Acid Acid

Jodorowsky
2020 | Nariz Entupido | Experimental, psicadélica

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Adaptar um livro ao cinema é, tantas vezes, tarefa hercúlea ou até mesmo ingrata, seja pelas dificuldades levantadas pela complexidade (ou extrema simplicidade) da obra; fazer-lhe a banda sonora é igualmente complicado, requerendo talento e sobretudo sensibilidade de quem compuser a música. Já resumir (que não se confunda resumo com falta de rigor, mas sim com sintetizar competentemente) em forma de homenagem musical a obra de um cineasta é um desafio de monta. É isso mesmo que Acid Acid, projecto de Tiago Castro – músico, radialista que nos ensinou muita música na Radar e SBSR e estudioso da música popular – se propõe fazer com a obra do realizador franco-chileno Alejandro Jodorowsky, alquimista do cinema experimental (lamentamos, mas temos mesmo de classificar assim a sua obra) e do surrealismo cinematográfico.

Avisamos já: não somos especialistas na obra do realizador e só lhe vimos três ou quatro filmes, incluindo os obrigatórios El Topo e A Montanha Sagrada, portanto desculpem-nos se a leitura a este disco e consequente associação às películas do realizador são um bocado enviesadas. Já no que respeita a Acid Acid, é um projecto plenamente especialista em tudo o que seja transformar sintetizadores em módulo de controlo de sonda espacial e guitarras e drones em combustível para viagens cosmos fora.

A linha de baixo inicial leva-nos não para um dos filmes de Jodorowsky, contudo, mas para o início de um filme com personagens memoráveis e bizarras e sequências surreais que bem podiam ser produto da imaginação daquele: Apocalypse Now. Tomemos o que ouvimos como um helicóptero de drones que vai a descolar rumo a um mundo psicadélico e magistral.

Metamorfose de paisagem sónica para um misto de Vangelis e post-punk, sem carros voadores, mas com percussão retumbante e marcial de Pedro Morrison – podia ser a antecâmara de um tiroteio ou de um massacre do maléfico coronel de El Topo. E o pescoço que começa a seguir a percussão e a melodia do sintetizador e demais arranjos.

A guitarra corta o sonho e espirra-lhe sangue quente para cima, ou não fosse Jodorowsky também exímio em ilustrar horrores no grande ecrã, como um primo surrealista de Dario Argento. Em seguida, travessia para o lado mais negro da obra de Jodorowsky, o de Santa Sangre. Não, não é preciso arrancar uma orelha como numa sequência daquele filme, que a composição é de portentoso recorte – são cinco minutos de delírio psych prog em crescendo à moda de Ash Ra Tempel.

Tudo isto daria para acompanhar uma sequência apoteótica (ou perto de) como a da morte e renascimento de A Montanha Sagrada. Até agora, pleno sucesso a musicar o ideário de Jodo.

Se o realizador franco-chileno andou a estudar o tarot durante décadas, diríamos que ele próprio é uma carta do imperador. E que este disco é, outrossim, uma carta com dois lados complementares e coesos, mesmo dentro de toda a exploração que se ouve.

Chega-se a ecos de uns Popol Vuh que de resto, contribuíram com bandas sonoras de texturas igualmente cósmicas (e, a espaços, soturnas) em filmes de Werner Herzog que, no que respeita ao surrealismo, nada ficam a dever aos de Jodorowsky – Aguirre, der Zorn Gottes é disso exemplo, sendo também uma viagem oscilante entre o absurdo e o violento.

Entramos no lado B a cavalo com El Topo algures pelo deserto ou a caminho de uma paisagem agreste e barrenta de Fando y Lis. Somos embalados pela guitarra de Tiago Castro e pela flauta de Violeta Azevedo (fazendo lembrar uns Kisetsu-Fu), balançando num atravessamento que desemboca numa mescla ambient que em termos cinematográficos (ou lisérgicos, vá) seria uma alvorada de cores vincadamente alteradas. Este lado do álbum é decididamente mais contemplativo, com menos poças de sangue e mais pegadas e degraus de devoção, tudo culpa das melodias.

Os sintetizadores de Rui Antunes a puxar convictamente e docemente à moda de Terry Riley, acompanhados de uma batida que volta a puxar-nos pelo pescoço e pelos ombros (só não pelas pernas porque estamos a escrever sentados, caraças) – Acid Acid meets Sensible Soccers. E, lentamente, vamos saindo do sonho até acordarmos, desta feita sem um gajo a dizer que isto foi tudo um filme.

A economia de meios é notável, dado o resultado. Num ano que levantou dificuldades logísticas aos artistas, Jodorowsky é um disco singelo na sua abordagem, mas de grande efeito na concretização. Tiago Castro e ilustres comparsas poderiam ter complicado a coisa com desdobramentos de conceitos e rendilhados fúteis, mas preferiram condensar (certeiramente, a nosso ver) a sua visão sobre a obra do realizador em dois capítulos igualmente densos e – porque não dizê-lo? – fantásticos.

Se o fito era homenagear Alejandro Jodorowsky e seu imaginário através da música e do abate de fronteiras entre os lados mais pesado e lúgubre e melódico e onírico da sua obra, então temos missão cumprida por parte de Tiago Castro, Violeta Azevedo, Rui Antunes e Pedro Morrison. É um disco que é um feito.

Tendo em conta a provável lista de participantes na hipotética banda sonora da versão de Dune de Jodorowsky (um dos grandes projectos abortados da História do cinema), diga-se em homenagem ao presente álbum que este bem poderia fazer parte desse projecto que não foi infelizmente dado ao éter nem à película. Não houve Dune mas há inclusão de Jodorowsky na lista de melhores álbuns nacionais de 2020.

Num ano bastante mau e surreal (e distópico e, bem, jodorowskiano) soube bem esta recordação paradoxal da obra do cineasta, isto é, de o lembrar sem lhe ver uma cena que fosse. Mas junte-se as duas obras e elogie-se uma derradeira vez este trabalho: ponha-se A Montanha Sagrada a rodar e veja-se uns quarenta minutos deste filme com este disco a servir de banda sonora.

Aposta ganha, que está no tarot. Adeus, Jodorowsky, que a vida real espera por nós.


sobre o autor

José V. Raposo

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