Almirante Ramos

Cinco Canções
2020 | Edição de Autor | Dream pop

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Não é fácil a reinvenção ou a assunção de uma identidade artística, incluindo na música. Desde a habituação (que por vezes deve ler-se atavismo) do público à imagem e sonoridade de um dado artista ou projecto até ao tiro no escuro que é a alteração dessa identidade, é dos maiores desafios de um artista – um tiro no escuro, estabeleça-se. E um dos nomes nacionais que se lançou nessa mesma empreitada é Pedro “Almirante” Ramos. Não se diga, a nosso ver, que é uma novel identidade, antes o retomar ou prolongamento de uma anterior, agora corporizada num EP (ou meio disco, segundo o próprio), Cinco Canções.

Antigo editor da Amor Fúria, a companhia de discos do Campo Grande que, a par da FlorCaveira, se bateu pela formação de uma sonoridade típica e original dentro do dito rock alternativo nacional – com uns laivos de punk e uma certa irreverência livre de grandes grilhetas políticas e com uns discos melhores do que outros, o objectivo foi conseguido, dentro das limitações de meios que se abatem sobre os nossos, tendo os anos de 2008 a 2012 sido carimbados com aqueles sons.

Se o título é simples, a ontologia e o próprio som da obra são mais complexos do que aparentam, com sentidas homenagens – nas canções e nos videoclips – que o verdadeiro conhecedor apreciará.

Tal complexidade é aparente na primeira faixa, Dezembro. À primeira vista, trata-se de uma letra que apela à melancolia do mau tempo e consequente analogia com o negrume interior do fim de um amor – amor esse que já não voltará; porém, aqui se encerram todos os horrores da desintegração de uma relação amorosa: ciúmes, trombas, discussões (muitas vezes por futilidades), mudanças de personalidade que levam à desilusão ou algo ainda pior e inenarrável.

A letra desencontra-se com a melodia e com os arranjos, de pop onírica, agradável e com substrato e escola. Só podia ser Almirante Ramos, começamos a deslindar.

Não se denominasse o artista como Almirante e estranharíamos as alusões ao mar e à Pátria, dimensões indissociáveis da História e cultura do País, passe o lugar-comum – e uma das grandes bandas de sempre, os Heróis do Mar, como óbvia influência. Honrando as melhores tradições do canto popular à bandeira nacional, combina bem com arranjos que podiam vir do início de carreira dos Beach House ou até de uns Young Marble Giants – ou, se se preferir, de um DJ Screw vindo do Além para mexer no pitch, sem mexer na voz. Bandeira e coração ao alto.

Assume-se como oficial de um povo cantor. O boné do saudoso Enterprise, porta-aviões nuclear já abatido ao efectivo da Armada norte-americana, não engana. A capa da edição, da autoria de Silas Ferreira, remete para Cantigas do Maio, mas ainda que o Autor daí beba, parece-nos que quer fazer a ponte não só entre gente como José Afonso, mas também entre a geração de oitentas e o presente.

É o único da actualidade a ecoar Portugal e suas gentes e costumes no seu objecto de obra? Negativo; rapaziada de colheita recente como os Ermo, David Bruno e Chico da Tina já retrataram com crueza e candura o Portugal de vários tempos. A chatice da vida urbana também já recebeu tratamento de comédia por via de malta da Cafetra, desde o ódio de Maria Reis à Lisboa da década passada de Éme, mas sem se chegar à essência da Portugalidade – das romarias, dos mares e do que nos fez, faz e une.

Se (por exemplo) Chico da Tina é dionisíaco, com os seus ouros minhotos, colchões quentes de cambalhota e sarrabulho a rodos, Almirante Ramos é apolíneo, da luz, do equilíbrio familiar e sentimental e do destino histórico construído e a construir.

Continuando neste rumo, temos novo nome de relevo da pop da Portugalidade, nas melhores tradições dos já aludidos Heróis do Mar, Sétima Legião e Da Vinci ou de bandas que o próprio editou, como os Golpes, que foram, de certa maneira, uma paradoxal lufada de ar fresco, através da recuperação da temática e imagem daquelas bandas, sem vergonhas nem preconceitos. Sendo certo que a construção do neo-kuduro por editoras como a Príncipe e a Enchufada tem ajudado a densificar um som que representa o mundo de língua portuguesa – que, neste caso concreto, ajude a ligar as periferias das capitais daquele mundo e a dar voz a novas mundividências sonoras.

No caso específico da pop dita alternativa portuguesa faltava uma ligação entre batidas acessíveis e modernas algures entre a pop e o hip hop. E o resultado de Cinco Canções em termos de beats é mesmo o produto de um ouvido apurado e atento, sem cair na cópia abastardada e fácil. Que este seu meio disco seja o dealbar de uma nova onda que incorpore a esfera armilar no cancioneiro e a modernidade da música popular não guitarreira.

Se aqui se falou na Sétima Legião, a letra de Volta não engana, ao evocar Sete Mares e a procura da sorte – seja no meio do fogo ou do vento vindo do Norte. É, para nós, a melhor canção das cinco. Expliquemo-nos porquê.

Tem um refrão orelhudo que remete para o melhor da pop nacional, com um toque etéreo, uma quebra para respirar fundo e uma melodia sóbria que não afoga (piada não intencional) a maresia pop. E, bom, as homenagens a Iran Costa e ao clip do seu O Bicho e ao plano contínuo inicial de Recordações da Casa Amarela do nosso maioral João César Monteiro no videoclip da faixa completam o ramalhete de grandeza. Uma das canções nacionais do ano, sem qualquer vento que a desvie de tal rumo.

A transformação da dor do desgosto amoroso sofrido em rememoração melódica (e esperançosa, quiçá) é a força de Tão Lindo (o Amor). O prato de porcelana metafórico que se partiu desfez-se numa canção que conta como se conquista o mais lindo dos sentimentos (palavras do Autor nas notas ao álbum), como se sobe ao cume graças a esse sentimento e como se reconcilia com o mesmo.

Com Aurora se chega à quinta e última música. Enquanto proposta de interpretação do conteúdo da letra, afigura-se-nos que aqui se reúnem todos os elementos de Cinco Canções: o amor, aqui representado como vitória; a História da nossa Pátria, aqui a memória inventada (por todos), como um dos mitos d’Os Lusíadas; a aurora na qual foi marcada a História será o momento de viragem para longe de uma tormenta por parte de Almirante Ramos – para a nova aurora anunciada nas notas do próprio ao meio disco. No resto, é uma malha e tanto tributária de muita gente, incluindo dos Beach Boys.

Sempre de vante, as melodias, os arranjos e o onirismo de letras e sonoridade propulsionando com prazerosa cavitação pop o NRP Cinco Canções para novos mares artísticos e estados de alma. Devidamente comandando por um oficial de um povo cantor com galões dourados e espada fiel à bandeira. Bem aventurado (e bem acompanhado por quem o quer) seja nesta nova era da sua carreira.

 Cinco Canções pode ser apenas um meio disco, mas é um salvífico portento de alma.


sobre o autor

José V. Raposo

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