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O documento de identificação de Peter Brötzmann (creio que assim não ofendo ninguém) aponta o ano de 1941 como o do seu nascimento. A priori, dir-se-ia que um tipo que em ‘68 soprava furiosa e desenfreadamente “Machine Gun” por esta altura já deveria ter amansado. No entanto Brötzmann não é feito da mesma fibra moral que o comum dos mortais, e aos setenta e cinco anos conserva a mesma febre de improviso de sempre, a mesma urgência de viver e de criar. Se isso não é juventude, não sei o que o será.
Depois da promiscuidade que viveram em palco, os barcelenses Black Bombaim e o último dan do free jazz cunham um disco que vem materializar uma relação que há muito deixou de ser improvável. Num empreendimento levado a cabo por duas das entidades que mais têm feito pela música alternativa – marginal, como deve ser – num país que às vezes é demasiado pequeno para si próprio, Black Bombaim & Peter Brötzmann nasce com os selos Lovers & Lollypops e Shhpuma e traz consigo todos os que ao longo dos últimos anos têm criado oportunidades para se poder ouvir e falar sobre a música que realmente interessa em Portugal.
Para além da óbvia colisão que reúne os seus intervenientes, o disco é um reflexo de um interesse crescente na música pela música, sem a olhar rótulos, desprezando estéticas ocas, modas palermas e acima de tudo essa parasitária obsessão por likes e shares. Espelha um encontro de vários públicos que são cada vez mais o mesmo, uma mescla de gentes à procura do seu lugar numa noite que lhes é cada vez mais estranha – estrangeiros numa cidade que os viu crescer e agora se faz existir cada vez mais para inglês ver.
Não é surpresa que o saxofone ocupe indubitavelmente o primeiro plano. Com um imponente rugido, Brötzmann autoproclama-se porta-voz ao longo dos primeiros três minutos e assim se mantém até ao final do disco. O velho mestre agarra os miúdos pelas orelhas, tira-lhes as medidas, puxa por eles, e à medida que lhes vai dando espaço o disco assume uma incandescência que apesar de ser fruto da soma das suas partes é, na sua essência, bem mais do que isso.
Se calhar eles só queriam mesmo era tocar; se calhar esta colaboração dos moços do stoner psicadélico com o enfant terrible do jazz é só coisa de miúdos a brincar às bandas. Se calhar nem pensaram que a música sem palavras pode ser um documento tão fiável e eficaz como a canção, e se calhar estou só a dizer parvoíces porque na internet qualquer idiota as pode dizer. Ainda assim permitam-me: Black Bombaim & Peter Brötzmann, para além do velho mestre a ensinar a uns miúdos com quantos paus se faz uma canoa, é também o testemunho de um homem que diz ‘não’.
É Brötzmann que nos urge a tirar os olhos do chão, a resistir a essa vida bafienta e automatizada que astuciosamente nos empurram goela abaixo. No meio do ruído, da azáfama e de todas as distracções, o seu saxofone sopra o homem revoltado que jamais concederá ao vazio dessa existência de cinzentos e ângulos rectos. Sopra porque baixar os braços seria trair o que o move. Brötzmann não consentirá tréguas ao mundo, tal como não as consentiu em 89 no dia em que caiu um muro no seu país, continuando a soprar como se a sua vida dependesse disso. Sopra cada vez mais alto, mais alto que as vozes dos homens que ordenam aos homens, mais alto que o apelo desse mundo simulado que vemos através de um rectângulo luminoso. Sopra porque nos quer melhor; mais perto da vida. Brötzmann não se reconciliará.