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O ano que está prestes a acabar foi complicado e o Brasil não fugiu à regra. Entre os efeitos devastadores da pandemia, que revelaram ainda mais fragilidades do sistema de saúde brasileiro, e mais um ano de mandato do crasso e imbecil capitão lateiro, a barra foi pesada. Mas houve quem continuasse o trabalho que vinha a fazer e, bem assim, tenha tido ambições ainda maiores e arriscado artisticamente; falamos dos Carne Doce, banda de Goiânia (estado de Goiás). De resto, como nos disseram sem rebuço em entrevista há uns meses, estes querem o sucesso.
Contemporâneos dos Boogarins, os Carne Doce distinguem-se por procurarem um cruzamento entre a MPB e o que passa por indie rock e pop nestes dias; não deixam que uma certa posição geográfica meio desfavorável lhes retire vontade de singrar e de criar nem, como Interior estabelece, andam num queijim (rotunda) criativo, fazendo apenas e só indie bonitim. São mais do que isso.
A vontade de dizer ao Mundo o que vai pela veia criativa dos Carne Doce é tão grande que a canção de abertura de Interior, Temporal, é também a mais longa do álbum – são 7 minutos e 50 segundos em crescendo. Expressionista e extrovertida – e sobre um tema premente como os desastres climáticos – como influências clássicas e óbvias dos Carne Doce como os Mutantes e os Novos Baianos, tem também um rasgo na voz de Salma Jô à la Belchior, é dançante como o melhor de Jorge Ben, dos Cut Copy ou dos “nossos” You Can’t Win, Charlie Brown e vai desabrochando como uma malha de prog rock (ou de Phoebe Bridgers pré-Punisher). Como sugerem o videoclip e a letra: dancemos antes da catástrofe que nos levará a todos e teçamos loas à vida que sobrar.
A faixa homónima, Interior, dá uma de uns Darkside goianos; frescura indie, numa melodia agradável e envolvente, sendo o conjunto encimado pela voz de Salma Jô, aqui lembrando a de Teresa Salgueiro. Macloys Aquino e João Victor Santana, guitarristas, capricham na simplicidade dos acordes e eis então uma bela canção – não tão ambiciosa quanto Temporal, mas uma das melhores do álbum e do ano. Um agradabilíssimo desfiar.
Uma banda ambiciosa e ciosa daquilo que faz como os Carne Doce atrairá adeptos e detractores – ou mesmo odiadores. Hater é um samba a piscar o olho ao indie sobre a rapaziada que faz vida a dizer mal mas que nada de jeito constrói; dir-se-ia que Hater está para os Carne Doce como My War está para os Black Flag. Harmoniosamente e num muxoxo musical se reduzem as más-línguas a uma nota de rodapé e a material para uma canção, com uma quebra instrumental seguida de uma proclamação à Michael Corleone: “[…] E eu te quero por perto, quero estar à sua vista, preciso que você assista, p’ra invejar o meu sucesso […]”. Beijinho no ombro e chupem que é (Carne) doce, invejosos.
Mas isto não pode ser só tragédia climática e pessoal que não vai à bola com a gente. Há lugar para Garoto, dueto inédito de erotismo sedento entre Salma e Macloys. Construção indie suave que serve de mote para pessoal faminto e guloso que queira engatar em poucas palavras. Não é tema inédito na obra da banda: também Amor Distrai (Durin) e Princesa (ambos de Princesa, 2016) se debruçavam sobre a sensualidade e sobre a condição dos amantes.
O trio Saudade, Passarin e A Partida constituem para nós o interlúdio do álbum, em desaceleração de intensidade sonora. A primeira é uma espartana canção indie pop que revela a frialdade da indiferença no amor depois de todo o calor de Garoto (como que a lembrar o poema Segundo motivo da rosa, de Cecília Meireles), a segunda uma balada de relaxe aparentada a Steve Lacy (influência recente da banda, vide a entrevista) e a terceira uma profunda manifestação de saudade do amigo que já não está connosco (por cá tivemos perdas de amigos de toda a gente como o saudoso Xico da Ladra, paz à sua alma), que pertence agora ao infinito e com texturas de sintetizador que convidam à espera por um milagre ou por uma flor metafórica.
Nesta nova fase do som dos Carne Doce continua a ser pedra angular na produção o guitarrista João Victor Santana. Se Salma e Macloys são a alma da banda, Santana é a fábrica. Arranjos com samples, batidas e sintetizadores (Sonho é exemplo acabado desta evolução) ajudam a distinguir os goianienses das demais propostas dentro da actual música popular alternativa brasileira – como que um segredo cada vez menos bem guardado (ainda bem para o grupo, pois). E também da sua sonoridade anterior indie mais regular.
Se Fake não deixa grande memória, o oposto deve ser dito sobre Cérebro Bobo. Trip hop à moda de Goiânia, Salma a dar conta do recado num registo com menos agudos e mais flow e a coesão instrumental do grupo em evidência. Uma nota de elogio para o baterista, Frederico Valle; membro da banda desde 2019, quanto mais o disco avança para territórios como o trip hop, o reggae ou o indie pop dançável, mais ele está à vontade – entre a tarola, os pratos de choque e o bombo, responde a todas as solicitações estilísticas.
Prova do substrato dos Carne Doce é a inspiração de A Caçada no conto homónimo de Lygia Fagundes Telles. Passa do reggae para o dub enquanto o resto desfila liderado pela voz de Salma Jô, que narra cantando fantasmagoricamente a sua confusão mental (como a de uma das personagens do conto) de não se saber caçadora ou caçada – o certo é que há uma seta à procura de um alvo.
Comparativamente a conterrâneos como Tim Bernardes, Banda do Mar ou Cícero (o Rosa Lins, não o Marco Túlio), os Carne Doce são uma banda bem mais interessante; e em relação aos igualmente goianienses Boogarins há já um afastamento em termos sonoros e uma exploração para outras paragens, com Cérebro Bobo e A Caçada à cabeça. São um grupo que se agiganta em relação àqueles por procurar uma paleta mais diversa de sons e por tentar trilhar um caminho fora de estereótipos e de ideias fixas, merecendo só por isto uma audição atenta e recomendação firme.
Serem oriundos de um centro urbano periférico em relação aos grandes pólos culturais brasileiros como o Rio de Janeiro ou São Paulo só lhes confere maior legitimidade e mérito artísticos. Não é fácil, de jeito nenhum, construir um projecto destes longe das atenções mediáticas daquelas urbes – é mesmo ou vai (pelo talento) ou racha.
Um adeus De Graça que é uma descarga contra a futilidade de muito do nosso sofrimento e uma desmontagem dançante e espartana dos clichés de que o que não nos mata torna-nos mais fortes e do estoicismo de pacotilha. Um fechar de LP que confirma a maturação do som e da voz da banda e que deixa a porta entreaberta à curiosidade para ver para onde irá a banda nos próximos trabalhos.
Interior tem o mérito e atinge o feito de substituir (a nosso ver) Tônus como o disco-bandeira da banda. Não restem dúvidas: o passo não foi maior do que a perna e os Carne Doce são uma banda com substrato, que ainda está a crescer. Num corpo de trabalho de quase dez anos, oscilam entre o indie formulaico (o material menos interessantes) e o aventureirismo seguro (as mais interessantes, mesmo aquelas sobre temas prosaicos, como Açaí) e esgueiram-se para o pelotão da frente da música contemporânea brasileira.
A banda é do interior brasileiro, mas não é fechada. O disco é um interior, mas não é uma prisão; é, antes, um corpo cheio de luz. Danem-se os haters, que são bons é para catar coquin.