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O presente cenário de pandemia deveria ser o paraíso criativo de uma banda punk: cenários apocalípticos, prateleiras e ruas vazias em muitos sítios deste mundo e conflito social e político a resvalar para a violência. Contudo, pouco se tem ouvido nesse sentido – mais vale, se é para remastigar para o século XXI todos os rodeios contra Thatcher, Reagan, Cavaco e por aí fora. Outros há que viram costas ao mundo dito normal e que persistem em narrar o seu próprio calvário habitável, como é o caso dos Clockwork Boys, banda olisipo-algarvia encabeçada por Rodrigo Velez (aliás, Cobretti) e Hugo Conim (também dos Dawnrider) que anda nisto há dezassete anos e que resolveu enfrentar, de uma vez por todas, a sua própria pólis em Como Se Não Houvesse Amanhã, terceiro LP à séria da História da banda e sucessor de Cantigas de Escárnio e Maldizer (2016).
Para começar, viagem até aos antípodas na Austrália dos Clockwork Boys, onde jorra a Foster’s, os traseiros são roliços e a noite desértica é longa. Sucede que, muito mais do que Angry Anderson ou Bon Scott, o narrador é um autêntico Chopper Read, que usa os solos da canção como lâmina para cortar, à gargalhada, a ideia idílica do país dos coalas e revelar a decadência ardente do país-continente. Há heroína na bolsa dos cangurus.
Se o começo foi meio a homenagear, meio a gozar, então Rei Por Um Dia é o retorno à programação normal da banda: cheque na mão é via verde para vida largada, de viver à margem no copo próprio e no corpo alheio – tudo isto como se não houvesse amanhã, até porque as ressacas custam e não é lá muito conveniente dividir o saque sendo-se o rei de uma terra queimada de solos psicadélicos. E, bom, como quem brinca com lâminas é bem capaz de não viver mais dias, Cicatrizes é um retorno aos efeitos na pele e na alma à moda de Rebeldes Tatuados, um dos clássicos da banda; o problema é que as cicatrizes e as feridas tardam em sarar e a alma também não se limpa, tudo isto acompanhado por um riff portentoso que, coligido com a letra, carrega a malha para destaque do álbum.
Estamos a acabar a primeira metade do disco e, por ora, continuamos a ouvir o ADN dos Clockwork Boys: punk’n’roll à bruta. Cobretti canta com um misto de convicção raivosa e de uivo do desespero da vida maldita. O habitat da banda é composto por criaturas saídas algures de uma pintura de Bosch (“As Tentações de São Chunga”?) ou de uma masmorra da Inquisição, cujo intuito é o de torcer e rasgar vísceras dos incautos.
Quero Vadiar é uma balada punk, um passeio pela rua escura e peçonhenta onde nem até as ratazanas têm nojo do lixo. Ouvimos Black Flag de My War e Slip It In, bem como um pico de doom (terreno de Conim nos Dawnrider) e sludge, num conjunto de poderio imenso. Clássico instantâneo e afigura-se como a melhor canção de Como Se Não Houvesse Amanhã, já que é a que mais corpo dá ao espírito do disco.
E, bom, quem é que consegue desgostar de um saxofone daqueles?
O mundo dos Clockwork Boys não é um mundo onde haja grandes expectativas de sobrevivência, como se ouve. É, isso sim, um mundo onde se vagueia entre a neura e o vazio, entre um cerveja e uma ida ao inferno pessoal, onde se é cão para não se ser mero vira-lata e onde se é filho de um bacanal mas onde o prazer parece que se esfumou e ficou para os outros. A condição humana da banda é a de exploradores e pregoeiros do bas-fond, onde, para muitos, o amanhã é mesmo incerto.
Depois da dúvida existencial de Quero Vadiar, parece que os anseios do narrador são atendidos: incursão a rasgar a três acordes pela má vida porque A Noite Chama Por Mim. Odisseia zoeira até ao mundo do néon e luzes manhosas, dos gajos que mandam bocas e que acabam com um cocktail de dentes soltos no chão, dos finos e dos uísques meio marados e do mulherio de roupa interior demasiado atreita às forças da gravidade e que anda à caça de marid-, do conteúdo da carteira de um gajo por uma noite (ou várias, se tiver paleio). Absinto por vocação e pirata dos mares de Vat 69 por opção.
Desengane-se quem pensa que o trilho pela miséria humana acabou, que há Homem e o Lobo. A condição humana dos Clockwork Boys e das letras de Velez é a de um lobo que tanto pode ser o lobo do cavalo que rasga a dignidade do viciado, como o predador social, o lobisomem que rasga todas as carnes possíveis: a da vingança, a do património alheio, a do ódio, a de qualquer coisa bela e boa desta vida. Um refrão que é dos melhores numa galeria cheia deles ao longo da carreira da banda e toda uma homenagem tácita aos lendários Eskorbuto, os grandes bardos bascos do punk.
Contudo, mesmo no meio da depredação moral do universo da banda há momentos de lucidez e de, pasme-se, alguma rememoração feliz; em Feira da Ladra, a canção típica sobre os bons velhos tempos tão cara ao punk e ao hardcore. Atenta a geração dos membros da banda, que viveu intensamente os anos noventa e de parar pela Feira da Ladra para comprar botas da tropa e discos, haveria pois que homenagear o certame. Um abraço a tempos distantes.
Enfim, em Doce Inferno vem a paz interior da aceitação de que se tem lugar reservado naquele, sítio onde o punker terá todo o prazer em encaixar-se – o eterno acusado de parasitismo busca a redenção longe da sociedade de verdadeiros parasitas, aqueles dos biliões extorquidos ao contribuinte em nome do risco sistémico no sistema bancário e financeiro e de pequenos vigaristas sem phronesis. E como se chega lá? Através da morte – e de Morte.
Ouvida Morte, uma versão de It’s Only Death dos Testors (banda encabeçada por Sonny Vincent, com quem Cobretti lançou um óptimo split em 2019) dificilmente haverá amanhã – ou mundo, sequer. Seja na fuligem do Lower East Side de setentas ou na Lisboa covídica de vintes, só há melodia, ratazanas, tentações (heroína e Adelaide Ferreira incluídas) e tosse de cão tabágica.
Não há mesmo amanhã, é demasiado tarde para fugir, para ganhar ideais e para ver o pôr-do-sol. A vida é um loop de desgraças e um homicídio é um suicídio extrovertido, ali pelo meio das pedras podres da calçada cantadas por Cobretti e devidamente descritas em riff e solos por Conim. Um decidido “tenho dito” à fadista de tasca põe fim à jornada.
Em quarenta e cinco anos desde o álbum de estreia dos Ramones, o punk já foi dissecado, reexaminado, comercializado, expurgado, pseudo-reformado, categorizado, expandiu-se e deu origem a coisas completamente diferentes – por vezes cliché, por vezes inovadoras. Os Clockwork Boys raramente se assumiram como banda punk; na mediocridade que é a maioria do punk português, tal gesto é uma medalha, é uma honra e um desafio.
O seu primeiro concerto, as primeiras passagens na rádio e as suas primeiras edições foram no país de nuestros hermanos, que por cá parece que havia urticária mútua – e alguma inveja. Antipatriotismo? Longe disso, só mesmo escárnio pelas cliques e grupinhos do circlejerk que era e pelos vistos continua a ser o nosso punk, com honrosas excepções. E, no entanto, foram devidamente reconhecidos e colaboraram com uns English Dogs, com os próprios Mata-Ratos e tiveram, em tempos, José Serra dos Aqui D’El Rock (nem é preciso dizer mais nada) na sua bateria.
São, a par dos Mata-Ratos e dos Parkinsons, os grandes (e relevantes, sublinhe-se) sobreviventes nacionais dos três acordes, cada uma de sua maneira.
Dentro do marasmo a que o punk se entregou ao longo de décadas, é impressionante como os Clockwork Boys continuam a explorar, sem ranço, o seu próprio imaginário e universo. Todo um conseguido trabalho de continuar a encontrar os acordes e palavras certas – não se trata apenas de talento e de técnica, mas também de investimento em produção e gravação (mistura do canivete suíço humano Paulo Vieira), evidentes neste registo, para mais em tempo de pandemia e de limitações em contactos pessoais e ensaios.
Estes não são amanhãs que cantam, são amanhãs que morrem.