Conjunto Corona

ESTILVS MISTICVS
2023 | Mar Records | Hip hop tuga

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Acendam-se velas, que estamos em Portugal, país de muitas crenças e rituais. E o hip hop nacional (aliás, hip hop tuga) tem já liturgia com décadas. Parte relevante desse universo é o Conjunto Corona, colectivo fundamental do ritmo e poesia português dos últimos anos – e, cada vez mais, da sua história. Sob a tríade “bruxedo, morte e jarda”, o enigma tripeiro dá-nos agora ESTILVS MISTICVS, uma incursão da chungaria pelo oculto.

Geralmente entendido como uma dupla, composta por dB/4400 OG (David Bruno) e Logos (Edgar Correia), com o eterno hypeman/corporização de Corona Homem do Robe e o recrutado Tropa Snow (ou Zé Miguel de Ovar; compincha daquele em afters com conversa até às tantas nas Antas no óptimo Bro Gesso), o Conjunto Corona apresenta-se neste álbum como um quarteto (fora as presenças de Alferes M. e Piki P). Como outros colectivos de hip hop nacionais (caso, por exemplo, de Colónia Calúnia), o grupo não fica parado nas ideias e vai acrescentando ideias, personagens e histórias ao seu acervo.

Depois de mafiar bairro adentro enterrando o chino no olho e do gandim que foi para a rua em EVT, a entidade metafísica da rima Corona saiu de Civic (ou, como veremos, de Trabant) da variante e meteu-se por uma nacional bem gasta e acabou num caminho esquecido algures, sempre pela bruma. Foi à procura de exorcismos e espíritos, no meio de uma névoa de fumo de paiva e com cheiro a crisântemos mortos e terra revirada das campas.

Os obituários até podem encher a capa de ESTILVS MISTICVS, mas mal entra o excelente sample da canção titular (e a Pomba Gira até pode ser uma espécie de tuiteira que posta uns feitiços online para a malta ler) nasce o bruxedo num monte algures, com tequila, umas velas e manta em vez das galinhas pretas, seus ossos e do uísque. O Conjunto Corona fala com e invoca os espíritos e a gente senta-se à mesa com eles para ver no que dá a coisa (dá num malhão), com a certeza de que a luz branca vence a luz negra. Palavra de Tropa Snow.

Do abstracto da canção titular parte-se para o concreto, para a violência do CHICO COM A 6-35. Com um carregador numa meia, meio conto (bem servido, à Joaquim Cangalhas) na outra, o fato de treino do Sport Canidelo City é o manto do possuído primo nacional do louco de Diary of A Madman de Gravediggaz. A hipnose vocal trata de cimentar o breu do disco. Protejam-se, manos. OSS.

A brilhar no meio da escuridão de ORA RING DING DONG só o Rolex de Tozé Brito, a lembrança do Trabant dos Mão Morta, um refrão orelhudo e explosivo que nem as artimanhas de antanho do Sô Zé e vai daí para os luxos do cabrito (os ossos guardam-se para um bruxedo depois do sol posto) e de dois versos geniais de PRA CABEÇA OU PRO PEITO: “No tempo dos capuchos, não havia um centro / Que não visse a tola do Jardel.”

O Corona está agora metido no horrorcore até ao pescoço. Diferente dos horrores gráficos da obra do mestre Allen Halloween, ESTILVS MISTICVS é, como já é costume nos trabalhos do grupo e dos seus membros a solo, um estudo semi-etnográfico ricamente ilustrado, outra especialidade da casa.

EXORCISMOS é, com efeito, um interlúdio etnográfico. Um testemunho sobre os benefícios de um exorcismo do padre Duarte Sousa Lara, um relato probatório de programa da tarde daquela fé popular que para uns (supostamente mais esclarecidos) será crendice, e que para outros será uma luz e um caminho para o bem-estar. O médico tem um tratamento, o padre outro e o Corona o remédio definitivo.

Qual? Segundo Logos em EI OH MARUJO, um gajo “Devia estar sempre meio chapado p’a levar a vida”. E a morte? O flow de dB e Logos, sempre capaz de trocar as voltas às línguas e aos ouvidos, adverte a não cantar de galo, que com Corona dá direito a ir ao espeto e a convite para experimentar um T0 de terra.

Inserido na linha do tempo do hip hop tuga e cerca de duas décadas depois de álbuns como Dealema e Sobre(tudo) – entre outros clássicos –, o corpo de trabalho de Conjunto Corona representa uma evolução qualitativa, um consistente trilhar de bom caminho. Mantém-se o bom gosto na produção das beats e a rima é distinta, com o conjunto (salvo seja) encimado pelo Homem do Robe, que a mística não se cria sozinha.

Por falar em Evangelho, as REZAS (contendo um fragmento similar à Oração do Manto de São Jorge, contra a inveja alheia) são mais um interlúdio abrilhantador do álbum – etnográfico e de aviso subtil aos MCs invejosos e descrentes em São Corona. De Endovélico a São Jorge, passando pelos santos malandros da Venezuela, por Santa Rita e pelo Manel das Nespras, o São Corona, protector do lo-fi e fonte de hidromel, abençoa todos os fiéis.

E despede-se (alegoricamente? Veremos) do jogo em CORONA BYE BYE, invocando sonicamente os Three-6 Mafia. Quando se morre não é preciso correr, até porque finalmente se vai conhecer o Pai, nem é preciso pedir pela vidência do Bruxo de Fafe ou do Mestre Alves.

E nem é preciso um sundae e um pontapé no traseiro a Deus, só mesmo uma batida, umas rimas e fé.

Como se a armada do Conjunto Corona não estivesse suficientemente bravia e municiada, eis que Marco Duarte (o Marquito, aliás o Van Halen de David Bruno) faz uma aparição através de acordes em TABULETA. Bruxedo é rememoração, recuando-se até meados de noventas: laivos de DJ Muggs e Cypress Hill na batida e Estiquelapisse nas rimas, numa das malhas fundamentais do álbum, cujo enorme refrão dará para levantar uivos maiores do que os da turba à porta do tribunal nos processos do Rei Ghob ou do Tojó. E quem vier com treta? Vai parar à gaveta.

TREZE SEGUNDOS DE SILÊNCIO à John Cage servem de último interlúdio, numa capela remota iluminada por velas e pela jarda, num ritual chunga-pagão de reflexão contra a invejidade, a imposturice e o diz que disse.

Com tanto ritual até salta FUMO NA PANELA, mano. G-Funk vira Gaia Funk, com direito a referência a pops e bangs (e talvez uma caixa de rissoles) e uma quebra com Filosofia psicadélica entre o Homem do Robe e Tropa Snow – mais um refrão de tal maneira antológico que até o Santinho de Beire o trauteou, garante-se.

As rimas de ESTILVS MISTICVS são, dentro do hip hop nacional, como placas de homenagem deixadas no monumento ao Dr. Sousa Martins. Fosse o teste de qualidade e fé a um álbum o atravessamento de uma fenda estreitíssima como a do santuário da Nossa Senhora da Lapa e ESTILVS MISTICVS atravessá-la-ia a correr.

Numa altura em que dB pendurou o microfone a solo e a capa do álbum remete para mortes, tanto podemos estar perante mais uma viagem de Corona como perante uma morte artística. Nós por cá esperamos (nov)o renascimento artístico, que o País precisa de mais Conjunto Corona e de (bem) menos trapaceiros do bem comum. Pelo que se ouviu, o número treze trouxe sorte, sem a PUTA DA VELHA a chafurdar a sexta-feira.

Horrorcore com ossos de frango do Sol da Barra (frango assado nota 8/10, com nota de mérito para o molho), um caneco de hidromel (“os bons beberão e os maus não beberão”) e uma mezinha de sal com alho para combater os invejosos. Luz branca para um dos grandes álbuns nacionais de 2023.

Mãe, birei bruxo. E depois santo.


sobre o autor

José V. Raposo

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