Éme

Disco Tinto
2024 | Cafetra Records | Folk

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Comece-se esta crítica com uma nota prévia: este escriba não é o maior fã de vinho tinto (já se tiverem por aí um Quinta de Vale Meão…), preferindo, de longe, um branco ou um verde (aqui uns Alvarinhos de casta Loureiro, de preferência). Dito isto, prossiga-se.

Uma das melhores coisas de se entender uma dada linguagem é a de, quando somos receptores de uma mensagem, não só a descodificarmos e entendermos na perfeição como esta ser de indiscutível beleza e consequente grandeza. Atendendo ao título do álbum em apreço, o equivalente vínico é a correspondência entre o nosso palato e aquilo que se está a beber. Assim é Disco Tinto, longa duração de Éme, cantautor nacional cada vez mais de excepção.

Fora destas lides indo pelo nome de João Marcelo, Éme, para além de ser um dos fundadores da Cafetra Records, é parte integrante do ADN artístico da editora, nome maior de uma instituição com cada vez mais nomes maiores (também este ano Maria Reis lançou mais um disco incrível). Depois das suas primeiras edições em inícios da década passada e d’Os Passos Em Volta, tem passado os últimos dez anos a tornar-se, como já se aludiu, num cantautor indispensável no cancioneiro dito alternativo nacional.

Marca registada desde o início da actividade da Cafetra é a de as obras da editora serem uma autêntica reunião de amigos (ouça-se, por exemplo, Putas Bêbadas) e de ideias e Disco Tinto não foge à regra. Para além de Moxila, grandes de sempre da editora como Miguel Abras e Lourenço Crespo marcam presença no baixo e no piano ajudando a abrilhantar o que já muito brilhava.

Diga-se, com toda a justiça, que várias das canções de Éme são dos melhores retratos da vida urbana nacional contemporânea, uma autêntica banda sonora destas vivências. Para tal, pegue-se em Lisa ou em Roma-Sé, esta uma canção cimeira da obra de Éme e um retrato de uma odisseia dos argonautas alternos de um eixo Cais do Sodré-Barreiro. E agora, com Disco Tinto, temos o mergulho num vinhedo sónico de vinhas velhas (as evocações dos que o precederam) e vinhas novas (que aqui depressa dão fruto).

Quando um disco começa com uma canção como Dores Laborais é caso para dizer que a audição em loop cai que nem uma boa pinga. Numa melodia guitarreira que remete para os inícios dos Real Estate uma letra que nos conduz para uma raiva crescente contra um patronato que insiste em violar a dignidade do trabalho e contra o estado de Lisboa, vendida aos bocados e tornada num recreio de endinheirados que não a percebem nem merecem – o pé que não tocava o chão de Lisa é o mesmo pé que é obrigado a fugir dela.

Afogue-se as mágoas num bar-canção homónimo com o título do álbum e cuja selecção não tem tretas: Mateus Rosé e Murganheira e quem quiser prosecco vai ficar a seco. O ritmo e a melodia estão em sintonia com a alegria da bebida de borla do refrão, antinómica com a hipocondríase caseira do café e televisão.

Como é consabido, quem bebe uns copos fica com o grão na asa e, muitas vezes, perde-se dos da sua laia, ficando a perguntar-se Onde é que foi toda a gente?; no caso de Éme, saca uma malha à Bonnie “Prince” Billy. Ao contrário de cerveja quente, estamos perante um dos prazeres do disco, que escorregou que nem CR&F (devidamente homenageada na letra), esse néctar de muito bar e prostíbulo nacional. Sagres é lixo, contudo.

E depois do “depósito” cheio, a tormenta da ressaca (felizmente que desde 2006 que não sabemos o que isso é). Sucede que, ao contrário dos horrores monumentais de uma ressaca, Branco Maduro é toda uma magnificência de composição na qual os elementos que constituem a grandeza de Disco Tinto se encontram: a execução ímpar, os arranjos multiplicadores de força e, porra, um dos grandes refrães da música nacional mais recente. Faltam adjectivos dos bons para escrever sobre estes versos: “ter um grande vício é quase igual a ter fé, um é um tiro no escuro, o outro é um tiro no pé, ter um grande vício é quase igual a ter fé, se o motivo é obscuro, diz-se é assim porque é.”

Por seu turno, o remate do estribilho com “branco maduro ao balcão escuro do café” assenta na praxis de tantos dos nossos, de agora, de antanho (como o avô materno deste escriba, o Sr. Albano, que ao fim do dia ia ao tasco beber uma taça de branco “com uma pinguinha no cimo”) e do futuro – tantos, mas tantos que há que chamar o Instituto Nacional de Estatística para fazer esse censo.

No item da colaboração neste álbum, a medalha de ouro vai para Moxila, companhia já antiga de Éme (com destaque para o recente Éme e Moxila, tomo dadaísta criado em dueto). Desde a instrumentação até à voz, passando pela co-autoria de várias canções, é uma autêntica alma de Disco Tinto, a casta fundamental (por assim dizer) que agiganta a estrutura do conjunto.

Exemplo cabal? Precisamente Branco Maduro, a quarta faixa do disco e, para nós, a sua canção de topo. Os arranjos de flauta de Moxila, combinados com o violino de Francisca Aires Mateus, carregam a melodia da faixa e são um cruzamento perfeito para que Éme marque um golo de bandeira em forma de canção intemporal para quem queira deslindar onde andam os herdeiros contemporâneos de Fausto Bordalo Dias.

O ambiente de bar de Disco Tinto tanto dá para Bukowski como para Marante. Em O Actor ouvimos uma profundidade emocional (e melódica) que relembra o esplendor imperial do melhor dos Wilco e que catapulta quer Éme, quer o disco para voos inéditos no seu percurso.

Uma canção que é uma evocação com acordes. De quem? Do saudoso José Lopes, actor, músico e, sobretudo, personagem daquelas que vira lenda de paragens nocturnas, mesmo que por vezes não tivéssemos grande pachorra para lhe darmos um ou dois dedos de conversa; ainda o vimos em sítios também já desaparecidos, como o Estádio e o Indie Rock Café, ambos no Bairro Alto que, hoje, salvo algumas excepções que o pontilham, é mais caricatura grotesca de falhanço da pós-gentrificação (e da massificação travestida de democratização do acesso a certos espaços) do que um bairro lisboeta com assunto, como no tempo em que pelas suas ruas se cruzavam fadistas, prostitutas, jornalistas, noctívagos e outras personagens em vez de parolagem e turistada de balde de cerveja ou de caipirinha na mão, poisando em buracos indistintos situados nas carcaças de onde outrora se fez uma gloriosa história maldita.

Nesta elegia de inexcedível beleza, cabem ainda evocações de Fausto Bordalo Dias, José Mário Branco e José Afonso. Se José Lopes está na galeria das vivências de Éme, aqueles três saudosos colossos estão no seu ADN artístico. Junte-se-lhe a vulnerabilidade emocional patente e temos malhão.

Se a parte instrumental de Disco Tinto é um copo de três então as letras são o petisco que acompanha a vinhaça, a sandes de gorgonzola (perguntem a um tal Leopold Bloom) que vai bem com este tinto – que tanto pode ser da Borgonha como do Dão. Seja em Dores Laborais, em Branco Maduro ou em O Actor, Éme nunca foi tão longe nos seus versos.

De grandes almas passamos para fantasmas-estupores, como o Filho Mais Velho do Embaixador. Os coros fantasmagóricos e no ponto de afinação de Moxila, juntamente com o trabalho instrumental e vocal de Éme, são uma lição de melodia e de acidez contra uns sujeitos maléficos que não passam de farrapos com pernas que nos chateiam o sono.

A intensidade do álbum não esmorece e segue-se o humor de Ratitos. Uma espécie de I Left My Wallet In El Segundo mas em forma de rábula e num bar onde pontificam poetas malditos (uns primos de Manuel de Castro e António José Forte?), gajos pseudo-eruditos que devem é andar à cata de subsídio e tacho na “cóltura” e uns pragmáticos ratos que recolhem os despojos dos humanos desavindos.

No Purgatório de Disco Tinto, o castigo é levar com um ambientador que afinal tem fedor e com bebidas servidas por Satanás. Onde entra, então a purificação? Numa belíssima encarnação de Bert Jansch (que acordes, senhores), num refrão que puxa o cantarolar e que se revela um subtil paraíso sónico e um caderno e carteira que terminam aqui a sua epopeia. Fim de disco que soube a tudo menos a fim de vida.

Para além de ser um dos grandes álbuns do ano, Disco Tinto estabelece-se como obra maior de Éme e da Cafetra. O entrelaçamento artístico com Moxila atinge aqui novo apogeu, de arranjos crescentemente sofisticados e que provocam em quem ouve e compreende o registo um sentimento de expectativa para o devir, que esta pinga aural foi bem puxada.

Se não é possível escrever a História do vinho nacional sem referir um Barca Velha ou um Buçaco Branco, também não é possível escrever sobre música dita alternativa portuguesa sem um capítulo sobre a Cafetra e sobre Éme, Moxila e demais enólogos sónicos.

Disco Tinto é um disco distinto. Uma pomada de reserva com acordes e letra. Sem sulfitos.


sobre o autor

José V. Raposo

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