Expresso Transatlântico

Ressaca Bailada
2023 | Edição de Autor | Musica contemporânea portuguesa

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A iconoclastia é uma das forças motrizes da mudança na arte em geral e na música em particular. Desde Stravinsky e a sua Sagração da Primavera até ao free jazz e à árvore genealógica do punk, o choque da inovação através do desafio às convenções é poderio em forma de acordes. Pelo que já se viu e ouviu dos Expresso Transatlântico, banda nacional que mal tem dois anos, neste ano de 2023 não houve maiores iconoclastas na música popular nacional do que eles, que agora apresentam o seu álbum de estreia, Ressaca Bailada.

Trio lisboeta composto pelos irmãos Gaspar (guitarra portuguesa) e Sebastião Varela (guitarra eléctrica) e pelo baterista/percussionista Rafael Matos, apresenta-se ao vivo em diferente configuração – já os vimos em quinteto e sexteto num intervalo de dois meses. E neste seu Ressaca Bailada sacam de ampla galeria de arranjos, incluindo sopros.

Gaspar e Sebastião Varela são bisnetos de Celeste Rodrigues, sobrinhos-bisnetos de Amália e filhos do cineasta Diogo Varela Silva, logo os mores maiorum correm-lhes na família. O caminho que trilham é de construção de uma ponte entre a herança e o futuro – Gaspar actuou com Madonna (esse expoente do camaleão musical popular) e Sebastião cria um universo cinematográfico que impele o grupo para lá da música.

Para uma banda que mal tem dois anos de existência, os Expresso Transatlântico são já o pacote completo: maturidade em estúdio e em palco, estando agora no auge da revelação. Andaram nos últimos dois anos a lançar música (um EP homónimo e vários singles) aos bochechos, como quem vai comendo broa e presunto. Chegou agora a hora da estreia em longa duração.

Falando-se em bom repasto, a banda mete logo a carne toda no assador à primeira investida. Bombália é um manifesto daqueles que abre o peito, a alma e as velas à liberdade, uma ceiva melódica e rítmica consubstanciada num dos grandes malhões nacionais recentes. Se outrora Carlos Paredes ilustrou com a guitarra as tribulações dos inadaptados de Verdes Anos, os Expresso Transatlântico começam aqui o seu retrato desta nau de inadaptados – na vida real e online – que tantos somos hoje em dia.

O esplendor das guitarras entrelaçadas dos manos Varela assenta na pedra angular dos ritmos de Matos, num contínuo crescendo emocional interrompido por uma quebra igualmente densa. Nestes tempos em que dizem que há para aí vida extraterrestre, dê-se aos alienígenas Bombália como o exemplo da música contemporânea dos humanos de Portugal.

Num país que é uma coboiada, Alfama é a nova Dodge City e numa tasca convivem o Homem da Harmónica, Pike Bishop e Tom Doniphon. Das Portas do Sol avista-se o desfiladeiro, o Tejo é o novo Rio Grande e em vez de turistas e o passar do 28 é Western à Lagareiro a banda sonora, uma autêntica continuação de Alfama, Texas do EP homónimo da banda de 2021. Os irmãos Varela encenam um duelo ao meio-dia entre os revólveres de cordas de Carlos Paredes e Dick Dale que é um dos pontos altos num disco pejado deles. Se a malta se mexer, não lhe dêem tiros, só música.

Pelo que já se ouviu de Ressaca Bailada, já estava na altura de os Dead Combo terem a sua própria árvore genealógica. Os Expresso Transatlântico expandiram o som da antiga dupla, não sem antes de homenagearem os precursores através de O Gangster (Canção para Dead Combo).

Melodicamente, é um clone do que Tó Trips e Pedro Gonçalves construíram, com o acrescento (nada despiciendo) do ritmo, qual cavalgada do Zé do Telhado – algures no Marão ou para os lados de Malanje. Beleza, fúria e nostalgia de olhos postos no futuro.

Canções como Stárerópz aproximam-nos de uns Talking Heads no arrojo, mas o uso de instrumentos ditos tradicionais coloca-os também órbita de António Variações, de Sétima Legião, dos Pogues (RIP Shane MacGowan) ou de uns Resentidos, num plano iconoclástico a resvalar para o punk e de Portugalidade instrumental. Na senda de Pedro Caldeira Cabral e, mais recentemente, Ricardo Rocha, Gaspar Varela introduz a guitarra portuguesa em domínios contemporâneos, revolucionando o âmbito do instrumento e desmistificando que este só se limite ao fado e só aí possa ser central. Quem disse que os tacões de Alfredo Duarte Júnior, o fadista dançarino filho do ti Alfredo Marceneiro, não poderiam girar furiosamente num mosh pit?

O que ressalta disto tudo é que ninguém soa como os Expresso Transatlântico. Reforce-se com outra pérola do disco, Porque Nada tem um Fim; numa canção que mais soa a um epílogo épico, o cosmopolitismo da banda da Rua Joaquina é um universo incrível e não uma parolice afectada tresandando a complexo de inferioridade, como as Califórnias em Matosinhos, os Allgarves ou os Oeiras Valleys.

Aproveite-se Duas Margens (Interlúdio) para levantar a questão, ela própria sobre lados: qual é o estilo dos Expresso Transatlântico? Dada a açorda que para aqui vai, talvez um punk-fado? Afigura-se redutor mesmo com a toada punk, até porque, no tocante ao envolvimento da guitarra portuguesa no rock alternativo, Yonatan Gat já (bem) o fez em Iberian Passage. Atentos os arranjos e parte da temática, um fado eléctrico western-mafioso? Também não, porque o disco não se cinge apenas a isso.

Será das “músicas do mundo”? Calma, que Portugal ainda não fica no estrangeiro. E folk ou música tradicional portuguesa? A primeira é, para nós, uma categoria estrangeira e a segunda não comporta elementos de rock alternativo.

Por ora, fiquemo-nos por “música contemporânea portuguesa”, porque o que nos chega aos ouvidos é música, porque é destes anos e porque é inconfundivelmente português. E magnífico, porra.

Vindo do Titanique, Conan Osiris embarca com toda a cunfia na Barquinha para emprestar a voz à única malha (salvo Duas Margens) não instrumental do álbum. Interligando-se com a instrumentação, é um lamento que sulca o mar do arrependimento: “Jura que danças com o mar / Como nós dançámos / Quando tu provaste uma lágrima minha”.

Num país em que há órgãos de soberania com vergonha gráfica daquilo que representam, eis uma banda sem vergonha do seu ADN e que, no contexto da evolução da música popular nacional, representa algo indubitavelmente singular e um grande passo à frente. Se os (óptimos) trabalhos editados este ano pelo Conjunto Corona e por Ben Yosei são estudos etnográficos e emocionais dos enigmas e crenças populares, então Ressaca Bailada é uma abordagem ao cerne da música popular nacional – de faca nos dentes, de beleza dedilhada e de um universo que teve agora o seu Big Bang.

Para fechar o expediente, dois últimos movimentos dançáveis com Beco da Malha e a canção homónima do álbum. Últimas meias-unhas para encher copos, últimas melodias de gabarito e última oportunidade para dar às juntas nas horas mortas da noite. A penúltima faixa é a derradeira carga-manifesto do Expresso (e com uns arranjos que são um piscar de olho ao outro lado do Atlântico, mais a Sul) e a última é o retrato da festa a acabar já de porta fechada, só com os habitués ainda presentes.

Arranjos de sopros e um frenesim abruptamente cortado por mais uma quebra, esta a puxar para a balada onírica e um dedilhar final como uma Closing Time do tio Tom Waits, com uns laivos de psicadelismo – como quem sai meio trôpego da festa onde viveu para não meramente existir.

Assim finda Ressaca Bailada, que nos lembra um sonho lindo mas infelizmente acabado. Devidamente ancorado em referências de relevo e fundindo tradição com contemporaneidade, é um álbum único na abordagem e sem paralelo recente relevante. Tanto palavreado para se dizer que Ressaca Bailada, por tudo o que representa é, para este escriba, o melhor álbum nacional de 2023.

Em cerca de trinta e cinco minutos nasce uma iconoclasta (punk como tudo, portanto) união em forma de baile entre a guitarra eléctrica e a guitarra portuguesa. Eis o verdadeiro casamento real de 2023 e que dele nasça uma dinastia.

Como dizia o saudoso mestre Leonel Nunes: “a Amália nasceu para o fado e eu nasci para o tinto”. Os Expresso Transatlântico nasceram para botar que tem e serem a sua própria coisa. Que a sua modernidade sobreviva ao efémero (como diria Baudelaire) e se torne tradição.

Se depois da tempestade vem a bonança, depois da ressaca vem o baile. Um baile de beleza e fúria com saudades do futuro.


sobre o autor

José V. Raposo

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