//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Com tanta coisa que nos venderam sobre o futuro quando o milénio dobrou há quase um quarto de século, afinal a nostalgia continua a ser um elemento preponderante – na vida e na criação artística. Se os anos oitenta foram reabilitados a partir dos anos zero, a redescoberta dos anos noventa levada a cabo nos últimos cinco ou dez anos é assinalável, em particular aquela de bom gosto e que traz valor acrescentado. Parte integrante muito recente desse acervo são os Fake Bliss, banda aqui do lado que ora se estreia em longa duração com Flowers Keep Growing in My Room.
Talvez seja exagero falar em renascimento do shoegaze (pelo menos na sua “pureza” original), mas certo é que o sub-género do rock dito alternativo está no ADN de uma catrefada de bandas boas que despontaram nos últimos anos, como os Wednesday. A instrumentalização da Internet como meio de pesquisa e o seu infindável acervo de informação torna qualquer pessoa com curiosidade intelectual e auditiva num fã acérrimo e especialista em música popular (e a música em terapia e fábrica de mêmes) no espaço de dias ou semanas e, cativante (porque desafiante) como é, o shoegaze leva a que os mais afoitos munidos de instrumentos e pedais comecem a emular os ídolos da torcida e o resto é com as musas da inspiração – tantas quanto a pedaleira exija.
O duo, composto por Marc Pitarch (guitarras e voz) e André Abrantes (bateria), é oriundo de Barcelona (com uma perninha por cá, em Carregal do Sal), mesma cidade dos Decibelios ou da origem dessa assembleia magna dos alternos mundiais que é o Primavera Sound. Intitulando-se como “underground pop”, à partida poder-se-ia pensar que o underground é mais debaixo da cama do que outra coisa.
Pedal de distorção a postos para o arranque com Fuck the World. Ao fim de trinta (óptimos) segundos de canção não restam dúvidas de que estamos de volta a 1991 mas, em vez de estarmos na modorra do sofá a ver anúncios das televendas, estamos a ver stories em barda no Instagram; também não estamos numa qualquer cidade cinzenta britânica, antes estamos em Barcelona a cavalgar uma onda de volume. Não há mesmo remédio que salve a devoção das bandas de shoegaze – e a dos Fake Bliss em particular – e a nossa em relação a tudo o que envolva ruído e sonho, é mesmo doença crónica da boa.
Desengane-se quem ache que a linearidade de Heatwave a torna numa canção menor de Flowers…; pelo contrário, é das melhores faixas do álbum. O entrosamento é assinalável, a letra um portento de displicência e sarcasmo e o pseudo-jangle distorcido da guitarra alarga os horizontes sónicos do grupo para territórios que o tornam distinto dos demais. Uma malha de pódio do disco.
Numa obra onde o negrume e o sarcasmo parecem ser a regra, um pouco de ânsia de libertação vem a calhar com Inhale The Sun. Ouve-se a influência dos Teenage Fanclub e dos registos mais recentes dos Fontaines D.C. numa visão acústica que é um interlúdio para respirar no meio do peso sónico e da nostalgia, bem como a prova de que o espectro criativo da banda vai para além de música de fitar pedais. Aconchegados num subsolo emocional ansiamos por inalar o Sol.
Daqui se parte para a asserção de Glorious, momento no qual o timbre de voz de Pitarch ascende ao de Cobain dos primórdios dos Nirvana e a instrumentação é puramente Ride. A letra diz-nos que os olhos de quem berra estão a ser queimados pela luz solar, uma urgência médica e mental concomitante com a urgência sónica patente.
Ao contrário do lamento sobre a nostalgia dos oitentas que foram esquecidos de Losing My Edge de mestre James Murphy e companhia, a nostalgia de Fake Bliss e o título do álbum são de uns noventas bem lembrados, com as camadas contemporâneas de (boa) rememoração em cima. De trilhos muito batidos do shoegaze, da dream pop e do post-punk nasce aqui um memorável caminho novo.
Num álbum pejado de boas canções, propomos No One Can Serve Two Masters como a campeã. Se tanta gente que se tem aventurado pelo neo-shoegaze (chamemos-lhe assim) tem pedido emprestada uma costela e uns acordes aos My Bloody Valentine e aos Slowdive, poucos se lembram de outros maiorais dos primórdios do shoegaze: os Swervedriver. Uma boa mistura dá conta, peso e medida ao sangue que vai na guelra dos Fake Bliss. Durando menos de dois minutos, é pequenina mas trabalhadora.
Yeah Haha, single que nos apresentou o grupo, é o espelho da capa do disco, onde pontifica um querubim sadboi que, em vez de aturar pessoas, tem ar de que preferia estar a ouvir Swans num canto do trono de Deus. Um refrão fluido e hipnótico que é tudo menos um riso tímido no meio da distorção, aqui mais na veia de uns DIIV.
As influências dos Fake Bliss vão todas dar a uma grande rotunda do indie. Em Nothing Is Safe voltamos a dar uma volta à mesma e a enveredar pela Rua Leisure dos Blur, com uma guinada pelo Beco dos Have a Nice Life e estacionando nos versos de desespero onde Pitarch arranca as suas vestes num crescendo final que é ponto alto do álbum.
Com o sonho de liberdade (“[…] and tomorrow I’ll be free […]”) de About Today se chega ao fim dos trabalhos. Tudo no onze para embalar uma balada de voo onírico à vertical de muros de noise. Especule-se que ao vivo o resultado desta elevação aos píncaros do ruído só poderá ser para lá de poderoso, um fecho de concerto daqueles de dar graças a Deus de se ter presenciado tal coisa (e de ter tampões nos ouvidos).
Quem não souber que o sonho (e o shoegaze) é uma constante da vida ficará a sabê-lo depois de ouvir este disco. Com os Drop Nineteens e os The Jesus And Mary Chain no retrovisor e circulando na faixa ao lado de nomes como Thus Love e Memorial State, pese embora algumas limitações materiais (ou opções artísticas) que impedem o disco de almejar maior músculo de noise, estamos perante um digníssimo registo de guitarras deste ano de 2024. Pode agora a banda regar as flores que insistem em crescer lá no chão do seu quarto metafórico.
O shoegaze tanto pode ser música para pessoal que faz do ruído modo de vida, como para quem vive demasiado na Internet e é um pobre diabo à conta disso (verdadeiramente sadbois) ou, ainda, para eremitas armados em Ted Kaczynskis de trazer por casa. Crê-se que todos eles precisam, por motivos diferentes, de uma injecção como a de Flowers Keep Growing in My Room.
A felicidade no nome da banda até pode ser falsa, mas a de quem a ouve é verdadeira. Benditos pedais.