Homem do Robe

GESSO OU GESSO
2024 | Edição de Autor | Techno psicadélico

Partilha com os teus amigos

Há mistérios que ainda hoje não têm solução. Desconhece-se, por exemplo, se Sócrates realmente existiu ou se foi produto das reflexões de Platão. Nos ditames deste, o mundo dividia-se, mais coisa, menos coisa, em duas categorias: o mundo das ideias e o mundo dos sentidos. Uma catrefada de séculos volvidos e temos agora que o Homem do Robe, entidade que varia entre a corporização do ideário do Conjunto Corona e uma mística própria, nos vem propor a sua metafísica (ou mete-a-física, como verão) em GESSO OU GESSO.

Tal como no magistral Bro Gesso, editado no ano passado, GESSO OU GESSO amplia os temas de viagem ao fim do turno de trabalho e ao fim da noite (como um Céline nacional, mas desta feita a centenas de batidas por minuto), indo mais longe ao propor que se opte entre uma viagem ou outra ao mundo do GESSO, povoado por personagens que ora não fazem nenhum, ora dão tudo – no ferro, na drogaria ou na pinocada, quais titãs da putaria. Mens insana in corpore insanum.

Apertem os cintos, tomem a(s) cápsula(s) e entrem no universo do Homem do Robe, onde a metafísica é ditada pelo GESSO e o nosso messias mascarado e devidamente togado calcorreia o seu mundo calçando chinelos com meias (ele e os comparsas do Conjunto Corona são os únicos tipos que conseguem mandar drip nestes preparos, os demais desistam) e tendo um canhão fumegante como cajado para guiar todos os fiéis.

Cheio de GESSO e sem medo do que aí virá declara-se o maior logo no arranque do disco em O Maior, aquele cuja coragem é mais forte do que os obstáculos, aquele para quem o impossível é apenas temporário. Muhammad Ali? Quem é esse?

Aumentam as BPM na pista e dá-se o mergulho no Rodízio de Droga. Neste rodízio o sushi tem molho de francesinha, os tropinhas estão connosco nas profundezas e no fim vai um martini para rebater o suadouro no submundo. As BPM raiam perigosamente um transe catártico – sem misturas que isso dá alhada, contudo.

Se para trabalhar com conas é preciso ser caralho, já proclamava o próprio Homem do Robe em Conas e Caralhos, o encontro de genitálias de Sexo no Saxo é um retrato de uma sexta ou sábado de madrugada, com o carro engatado, o travão de mão ajeitado e o cartucho aviado atrás das rulotes. O refrão homónimo é um mantra da sede de pinocada, daquela de fazer corresponder os duzentos à hora a assapar A3 fora com umas nabadas valentes em orifício corporal alheio.

O saudoso Luiz Pacheco, se alguma vez tivesse conduzido, não teria dito melhor do que o Homem do Robe.

Se não pára a martelada, A Máquina Parou do nada de madrugada. Não são só os fusíveis cerebrais queimados, também o fusível da máquina foi ao ar; onde andam o Tropa Snow e o Carvalho para ajudarem a arranjar a coisa. Na pista tudo como dantes, só faltando um porco assado fatiado fininho ou meia picanha por seis euros (é preço), que estamos firmemente em terrenos de Larry Heard/Mr. Fingers, Jeff Mills e Jamie Principle turbinados.

Pelo meio da odisseia neste mundo onde é sempre noite e, como tal, a Lua é uma bola de espelhos, uma pausa para Ganza no Café, que toma aqui a forma de espécie de interlúdio. O cérebro aqui não derrete, antes precisa do combustível do cânhamo para aguentar o psicadelismo da aventura.

Tal como Bro Gesso (2023), este disco tem o seu pendor autobiográfico. Para aturar colegas que não fazem nenhum são mesmo precisas umas quantas pílulas para se sair da caixa de merda e entrar nas centenas de BPM da jarda aural. Nesta utopia bem longínqua da de Thomas More e situada numa prazerosa longa noite, dá-se gás para Levantar Pladour às seis da manhã (com o convidado especial Layfebuoy, que reconhecerão de outras vidas), que a madrugada não é só para bailarico saloio turbinado. E se o cliente não pagar? Vai tudo de marreta abaixo, em sincronia com as batidas incessantes (e porque o empreiteiro ordenou).

Chegamos ao ponto nevrálgico do planeta GESSO na faixa homónima do álbum. Os dizeres do Homem do Robe são autênticos mantras (e verdadeira marca registada da obra a solo deste) e a metamorfose acontece: o Homem do Robe transforma-se num urso-guia para todos aqueles que querem andar pelo seu mundo, numa produção que parece uns Kraftwerk para a geração que viajou demasiado na Manuel Damásio Airlines (MDMA) nos idos de noventas. O combate contra a inércia na pista atinge aqui um auge que atira ao tapete os incautos que não sentem a fritaria.

Para levantar pladour e para pescar o sexo oposto convém malhar Prensa no Ginásio. O mantra aqui é puxar ferro, a dor da hipertrofia é salvífica (já o mestre Arnold dizia) e só os fortes sobrevivem. Mesmo com GPS e bússola não sabemos bem onde estamos, se numa rave ilegal de noventas ou se noutro mundo/dimensão algures em 2024, mas cremos que, no meio disto tudo, houve um colapso espaçotemporal e só as batidas e a produção do Homem do Robe conseguem guiar os fiéis no Andamento Capital.

Continuamos no vórtice vertiginoso onde um gajo tem de fazer as coisas por si senão ninguém as faz. Eis o DIY do Homem do Robe, para ele uma religião. Uma investida final, uma oração com serrotes e pregos nesse templo que é a oficina do nosso compositor e guru. Eis uma lição de vida do mundo do GESSO para este mundo. Aprendam, que não temos bem a certeza se o Homem do Robe dura para sempre (o dinheiro para pintar a oficina de DIY é que infelizmente não durou).

No meio do mistério, das batidas e do surrealismo do mundo do GESSO, certo é que temos um dos álbuns do ano, seja lá que pírula se tenha aviado. Tanto dá para a pista de dança como para lucubrações ébrias ou, ainda, para um disco dançável de comédia. Nesta pedrada filosofal o GESSO é uma constante da vida.

De aparições esparsas e mística já de certa ordem de grandeza, com hidromel ou alimentado a cabrito feito por encomenda numa garagem, o Homem do Robe é inigualável no cancioneiro urbano contemporâneo nacional. Parece que tem uns imitadores rascas lá para os lados da Irlanda, mas a esses falta GESSO.

Não se esqueçam do cartão de visitante quando entrarem em GESSO OU GESSO, porque este é o mundo do Homem do Robe e dificilmente vão conseguir sair dele. Que a máquina não pare, que há muito pladour para levantar.

 

 

 


sobre o autor

José V. Raposo

Partilha com os teus amigos