Kero Kero Bonito

Bonito Generation
2016 | Double Denim Records | Pop

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Entrevemos na arte interpretações que a elevam e validam como prazerosa experiência. É um processo habitual, pessoal, e universalmente praticado: identificamo-nos com personagens, reprovamos as suas acções, sofremos, secretamente, em favor de uma possível narrativa. É humano. E no entanto, alguns tentam evitá-lo; incumbir à arte o peso das nossas quezílias será, eventualmente, uma profanação da sua singular existência no nosso mundo sensível.

Posto isto, também tudo pode ser uma tremenda chatice. E, aí, danem-se as teorias que enquadram o cinema como microscópio político-social; olvide-se o cânone literário que promete a transcendência intelectual: por vezes, saturados de pensar, nada mais desejamos que a simplicidade. Mas ocorre, também, sermos surpreendidos pela falsa elementaridade de um objecto básico e inocente, para mais tarde aferirmos, estupefactos, a sua textura, densidade, e múltiplas perspectivas.

Esta introdução pretensiosa, de um objectivo superior, resume um problema milenar. Simultaneamente, serve-nos para falarmos de um dos mais entusiasmantes projectos britânicos dos últimos tempos: chamam-se Kero Kero Bonito, são britânicos e profundamente influenciados pela cultura asiática, e lançaram recentemente o seu segundo disco, Bonito Generation. Quem são eles – e porque devemos prestar-lhes atenção?

O primeiro contacto com Bonito Generation dá-se com a capa de cores garridas, que envolve, em amarelo vibrante, a vocalista em traje de finalista universitária; será um dos temas amplamente explorados no disco, e principalmente em Graduation, um dos seus singles, impulsionado pelas dúvidas existenciais da estudante: These are the best days of our lives / That’s what the grown ups told us, right?”, dividida entre a maturidade – o diploma académico – e ainda uma ingenuidade que muito deve à infância, como se nota, um pouco mais tarde, no desajeito que caracteriza as suas palavras finais à escola: “Hey teacher! Leave those kids alone”, um caricato e assumido call-back à música dos Pink Floyd. Não saber que portas abre, no futuro, um diploma académico, é absolutamente contemporâneo e um dos grandes problemas do mundo globalizado.

Essa análise ficou a cargo da vocalista Sarah e das suas letras: simples, e embora não necessariamente confrontacionais, trazem temas caros à coming-of-age e ao quotidiano moderno. Break reclama o poder de fazer uma pausa – quem nunca o desejou, na azáfama que constitui grande parte dos nossos dias? -, Try Me desenrola-se durante uma entrevista de emprego e enuncia as várias qualidades do pretendente, onde coexistem o banalíssimo teamwork ao lado de, atentem bem, capacidade de organizar festas, e Hey Parents, faixa que termina Bonito Generation, é um diálogo com os pais, uma chamada a longa-distância já depois de abandonado o ninho dos progenitores. Quando, em várias alturas, esquece o inglês para lembrar a língua nipónica, não nos prendemos nos detalhes e seguimos a onda; é também mais uma característica da irreverência camaleónica do grupo.

Esta liberdade – de poder, sem prejuízo da sua credibilidade, ser infantil ainda que no contexto de algo real – é-lhes permitida, antes de um qualquer outro motivo, devido ao que aqui é alcançado musicalmente. Bonito Generation é um muito maduro disco pop, que chapinha sem pudor no enorme charco sujo dos seus truques e tropes, onde tudo vale desde que nos chegue carregado de açúcar. Aqui, temo-los quase todos: a cândida voz feminina, os refrões maiores-que-a-vida, a leviandade das letras, a acessibilidade dos instrumentais. Gus e Jamie, os dois artistas encarregues do som envolvente – e, um deles, dono de um respeitável repertório de camisolas de futebol – fazem-no com a melhor das intenções, e erguem os alicerces para um mundo inócuo, e quase utópico na sua incomensurável candura.

É uma postura na qual nem todos os artistas pop se revêem: a música tem que ser divertida e, em certa medida, viciante; mas podem divertir-se, também? E, mais ainda, divertir-se à custa da sua própria música e da estética associada – uma auto-referência?

Ouçamos a música que abre o disco, Waking Up, que nos fala do penoso processo de começar o dia. A dada altura, dentro da narrativa, abre-se a possibilidade de tudo o decorrido ser um sonho: então, a música acompanha a toada e transporta-se, por meio de um truque de produção, para um sítio mais distante, e irrompe um absolutamente despropositado momento solo de flauta (!), talvez uma paródia das próprias fórmulas de composição; ainda se ouve, depois de tudo isto, uma interjeição de Sarah, surpresa e satisfeita com toda esta brincadeira. Na seguinte, e como acontece com muitas outras no disco, surgem sons a propósito da letra: o barulho de um carro a travar, a dúvida de alguém, em diálogo directo com Sarah, ou o miar de um gato quando, em Graduation, surge a referência. Aproveita-se a estrutura da pop e levam-na mais longe, sempre com o cuidado de não sobrecarregar o som e a própria piada.

Trampoline, o maior single, poderia sintetizar tudo isto: fala-nos de um trampolim, metáfora que encaixa em infinitas intepretações, e das maravilhosas, extravagantes piruetas possíveis; em simultâneo, é um dos maiores bangers do ano de 2016, com um outro ridiculamente simples e eficaz, onde soa repetidamente “bounce!”, em diferentes tons, do normal ao chipmunk. Palavras pertinentes, sim: mas Bonito Generation é, de facto, um excelente disco pop e uma melhor ainda companhia para os dias menos bons.

Em suma, Bonito Generation é um disco que se propõe, à imagem das bem-intencionadas missivas de outros do género, a servir como música simples, talvez ainda uma distracção escapista ao nosso quotidiano. A sua pertinência não nos confronta, nem apazigua, mas não se coíbe de cristalizar a nossa era por meio das suas mais notáveis características: somos a sociedade do cansaço, possivelmente a mais egocêntrica até agora, e profundamente inquietos em relação ao nosso futuro. O confronto com essa realidade dá-se quando transportados para o hermético  mundo por eles criado. Será esta a missão da música pop, em geral, e este é um dos melhores trabalhos que se fizeram, nesse âmbito, no último ano.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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