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Numa época de sensibilidades e emoções à flor da pele que revelam a espuma dos dias, muito bom músico pelo País e pelo Mundo fora tem procurado reagir criando e descrevendo o que se vive, em particular em letras ou em melodias, cada um de sua maneira – seja pelo berreiro hardcore, seja pelos contrastes nos vários géneros e subgéneros da electrónica. E não tem de ser uma reacção directa aos acontecimentos (como a folk de manifestação à Dylan ou à Pete Seeger), podendo ser uma auto-observação, como a de Old Jerusalem em Certain Rivers.
Old Jerusalem (retirado do título de uma canção de Palace Music, uma das encarnações da influência perene que é Will Oldham) é o nome do projecto folk de Francisco Silva, cantautor nacional que para além do labor na música também se dedica à área da Economia. Esta dualidade, não sendo evidente na sua obra, explicará muita da devoção daquele à música e a persistir na criação por via de ser uma outra dimensão (ou mesmo braço direito) na sua vida, parece-nos.
Certain Rivers é o seu oitavo disco de originais, sucessor de Chapels (2018), sendo o seu título retirado de um verso de I Sleep a Lot, poema de Czeslaw Milosz, poeta polipátrida – mas sobretudo polaco – vencedor do Nobel da Literatura em 1980.
A abrir o disco não vamos logo pelo rio, mas sim colina acima em High High Up that Hill, uma colaboração com Peter Broderick. Em menos de dois minutos está dado o mote do disco, isto é, de folk para gente com cabeça para pensar e capaz de absorver o que Francisco Silva tem para dizer: “you can feel yourself being young and time stands still”.
Sendo, para nós, o tempo e sua relação com as nossas memórias os temas fulcrais de Certain Rivers, vamos servir-nos novamente de uma ideia sobre o tempo do Mestre Agostinho da Silva: a de que este é um nevoeiro caridoso com o qual se vela a eternidade, sem se ofender os nossos olhos. Para a margem de um rio (metafórico ou não) iremos em busca de lembranças do que nos fez e faz felizes.
Francisco Silva é um dos nossos melhores letristas, ponto final. Há duas décadas que constrói um cancioneiro, uma obra e palavras que merecem ser guardadas como, bem, a família Nuseibeh guarda a chave da Igreja do Santo Sepulcro lá para Jerusalém, há já uns quantos séculos.
Dignidade e solenidade são a marca de água da sonoridade de Certain Rivers – e bastam para traduzir o poder do álbum. Ouve-se a melancolia, mas não se ouve deprimência, um pouco à moda de Bert Jansch. O regresso a certos rios de boa memória não é nenhuma indulgência – é, isso sim, matéria para ser cantada, de ajuda em horas difíceis.
Caramba, Youth and Grandeur podia ser Thirteen dos Big Star, mas recontada com adultos – com casórios e filhos pelo meio. Será que ainda seríamos algo que faria os outros sentir a nossa falta? Uma canção belíssima, complexa e que exige várias audições (umas cinco, pelo menos), dada a sua qualidade literária e os seus arranjos. Para quê a cara triste, como pergunta o Autor? Com uma melodia destas não há motivo para tal. Encadeie-se na audição com Childhood Starts para uma analepse.
Ternurenta e introspectiva, Low Hum of Change resolve em dois minutos e meio fraquezas do espírito e perturbações várias (até do sono) que se tornam outrossim num rugido, rugido esse tão grande quanto os nossos medos que à solta andam. Se esta canção parecia um lamento, The Lament assiste à transformação da voz de Silva num sussurro grave num sítio lúgubre (ah, os arranjos), descendência condigna daquilo que em tempos fez o saudoso Townes Van Zandt.
E Will Oldham, onde anda neste álbum? Anda em In the Valley of the Shadows, talvez a canção de maior fragilidade e sensibilidade de Certain Rivers. Que não se confunda aquelas com ligeireza ou leviandade, porém. Só mesmo o petricor depois da tempestade.
Quem pensar que o facto de este disco ser espartano joga contra ele está redondamente enganado. Comparando-se uma The Lament com Tainted Rush ou mesmo com High High Up that Hill retira-se uma variedade melódica e emocional que não é de um disco simplório; há efectivamente um claro substrato intelectual (como de costume em Old Jerusalem) que exige mais do que um simples ouvir e trautear.
Outro exemplo cabal disso é Worth, canção de topo do disco (e do ano). Letra penetrante, que não destoaria algures nas prelecções de Aristóteles a Nicómaco, de que a sensatez deve prevalecer sobre desvarios. Folk barroca, mercê dos arranjos em crescendo? Talvez, mas certo é que é uma senhora e magnífica canção, terminada com um diálogo entre a guitarra e os arranjos (com um piscar de olho ao timbre de voz de Nick Drake e comparável a coisas recentes como Skullcrusher) em que Old Jerusalem relembra os costumes dos maiores, sem peias.
O despojo do disco é, para nós, uma bênção. E mesmo os arranjos possíveis assentam que nem uma luva; Worth é um encosto à parede do ouvinte: “The same stuff you left behind greets you once again”. Uma sinceridade brutal à semelhança da reflexão existencial de Angel Olsen em White Fire.
Por seu turno, Red Book é um apelo à memória que temos das pessoas – um elencar de matronas obesas, mas também de físicos magros e de olhos grandes de outrem. Mais um auge espiritual do álbum, que necessita apenas da voz de Silva e da sua guitarra e de mui esparsos arranjos.
Contudo, nem tudo é atreito à solenidade em Certain Rivers. A homónima canção de encerramento é um solarengo instrumental em jeito de passeio à beira de um rio propriamente dito. Não é preciso chegar a um Fahey ou a um James Blackshaw, que esta simples melodia chega para se respirar e absorver tudo o que se ouviu.
Que nunca nos cansemos de dizer isto: Old Jerusalem é um projecto nacional capaz de competir com congéneres estrangeiros, é material de selecção nacional dos cantautores e Certain Rivers um golo de bandeira em vinte anos de carreira. O veredicto que uma ilustre Autora nesta mesma webzine lhe dirigiu há cinco anos, por alturas de A Rose is a Rose is a Rose, mantém-se verdadeiro, com ou sem arranjos e convidados: Old Jerusalem é um irmão (ou um primo afastado geograficamente, vá) capaz de ombrear com projectos de nomeada da pátria da folk moderna, os Estados Unidos. Na balança de pagamentos de cantautores contribui para um saldo nacional positivo.
Se este seu oitavo disco de originais é um ponto de situação de vinte anos, então é uma reflexão e tanto. Mantém a singeleza do seu antecessor, mas evolui no sentido de uma maior densidade emocional. E, peça importante, a sua voz foi bem bafejada pelo tempo, contribuindo decisivamente (passe o lugar-comum) para a sua identidade enquanto músico – todo um mundo de diferença para o que lhe ouvíamos na estreia, em April. Mas sempre, sempre com intimidade e densidade.
De vez em quando até que vale a pena a gente afastar-se da estrada e dar uma volta pela margem do rio.