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Se os tempos de pandemia trouxeram tempo de sobra para revisitar o passado (o que interessa, pelo menos) e rever publicações em redes sociais ou caixas e álbuns de fotografias, a dupla Panda Bear–Sonic Boom foi ao passado para continuar a escrever a sua versão da música popular. O tandem de amigos composto respectivamente por Noah Lennox dos Animal Collective (já se lhes pode chamar instituição da música popular) e Peter Kember, histórico da experimentação psicadélica enquanto Sonic Boom e Spectrum e antigo membro dos vultos Spacemen 3, bem como produtor de prestígio, aproveitou bem os confinamentos e, procurando a luz da inspiração no meio do caos e da incerteza dos tempos, foi ao baú da doo-wop, das curiosidades de sessentas e aos brinquedos buscar samples, loops e arranjos, transfigurados, através de material analógico ou de um OP-1, em canções novíssimas que compõem Reset, o resultado dessa arqueologia.
Kember trouxe a mestria da fritaria dos seus loops e Lennox a sua já clássicas voz e sensibilidades pop (herdeiras dilectas dos Beach Boys) e ambos aqui juntaram as convicções de renovadores da música popular, canção a canção. Não o fazem pela primeira vez, visto que já o vêm fazendo desde Tomboy (2011), sendo os discos subsequentes de Lennox produzidos por Kember e tendo aquele emprestado a voz a All Things Being Equal (2020), álbum a solo deste, o primeiro em muitos anos. Já em Reset as suas ideias marcham agora na ordem unida de uma amizade duradoura, em tensão entre a simplicidade do género e a complexidade das suas ideias.
Segundos após carregar-se no play, a apropriadamente intitulada Gettin’ to the Point vai directa ao assunto do álbum: a aludida harmonia em forma de combate entre a pesquisa de sons analógicos e a singeleza das composições. Por entre a nostalgia por Eddie Cochran num sample bem sacado e a rememoração dos arranjos de guitarra nas obras de Panda Bear e de Sonic Boom, o conjunto completa-se com as harmonizações vocais daquele e os loops e arranjos deste – a toada do disco fica já marcada, mas com espaço para expansão.
Expansão essa que dita que a sonoridade que tem vindo a ser construída pela dupla desde há uma década atinge o ponto de rebuçado logo à segunda canção, Go On. Quase que podemos imaginá-la na banda sonora de um filme de mafiosos em início de carreira de Scorsese, como Mean Streets; o proto-proto-punk dos Troggs mesclado com a pop psicadélica/experimental (riscar o que não interessa) de Lennox e Kember, dicotomia sonora a combinar com a dicotomia do crime organizado, que se pode extrapolar da letra: o suor de um tipo ser a felicidade de outro, como um agiota.
Ao contrário do experimentalismo da rapaziada do noise e afins (bem hajam), o de Panda Bear e Sonic Boom quer-se melodioso e não estrondoso. E é isso que Everyday nos traz; loops a lembrar os de Joe Meek em I Hear a New World e uma letra circular de optimismo de peito aberto. Uma canção que é pop na fronteira do dub a deixar-nos um sorriso de orelha a orelha, como nos faz há décadas The Mummy’s Shroud de Junjo Lawes e Scientist.
Insira-se, pois, Everyday na categoria de “Se Um Dia Solarengo Fosse Uma Canção”. Quem disse que o analógico era cinzentão deve ser daltónico.
Em Edge of the Edge, a voz de Lennox entrelaça-se sinérgica e perfeitamente com a dos Randy & The Rainbows. É quiçá “a” canção de Reset, aquela que, para nós, representará o disco até ao fim dos tempos. Por entre o sample dos Rainbows e os arranjos com um telefone de brincar não se enganem: há sofisticação nestes sons que atiram para um Ryoji Ikeda melódico. O cimento de tudo isto é a letra surreal mas catchy até ao tutano, tipo pescadinha de rabo na boca: “of the edge, of the edge, of the edge, of the edge…”
Seja a conduzir a caminho de uma campanha courense no pino do Verão ou a descomprimir depois de um dia em que a tónica foi a de ter pessoas a desiludirem-nos fortemente, Edge of the Edge é remédio santo. Experimentem-no e verão, até porque, como canta Panda Bear, estará para sempre ao alcance de um botão.
Apesar de ter sido lançado no Verão, Reset funcionará todo o ano; se naquela estação é um acompanhamento a todas as tropelias e aventuras, no resto do ano é uma lembrança da bonança depois do frio e das agruras que há-de vir.
Também In My Body disputa o título de melhor canção de Reset. A puxar para o onírico, estamos, como na letra, presos num ramo, mas a ouvir as harmonizações de Panda Bear e os loops de Sonic Boom. Mas, ao contrário dos versos, não é uma questão de não conseguirmos descer deste ramo onde contemplamos tal espectáculo – é mesmo de não querermos descer porque o som está porreiro.
A meio do álbum surge Whirlpool. Fugindo à dicotomia de simplicidade-complexidade pop do registo e apesar de ser a faixa menos interessante do disco, remete para os Animal Collective e serve de interlúdio, que a segunda parte continua a desvendar o baú das curiosidades e a estruturar canções com substrato.
Emocionalmente, Livin’ in the After é a canção mais assertiva do disco, sobre o medo de tentar e de perder noites a pensar em algo, ainda que com um belíssimo fundo sonoro. Nada melhor do que um sample de uma canção com arranjos de cordas (in casu, Save the Last Dance for Me, dos The Drifters) para dar pathos a uma composição, à semelhança de (por exemplo) David Bruno em De Mafamude Com Amor. Sendo certo que Noah Lennox estabelece uma melodia que faz justiça aos antigos (melhor dizendo, às antigas), também os podemos imaginar a interpretar a canção: pensemos em Ronnie Spector (RIP) ou as Crystals a fazê-la sua.
O paralelismo com os Beach Boys confirma-se em Danger; ali se ouve melodicamente uma Break Away. Raios, raios, raios, raios, raios, raios, raios que estamos num perigo dos bons quando somos capturados pela melodia. Mais uma canção para assobiar de Reset, mesmo se o dia estiver cinzento. Neste mundo analógico de Panda Bear e Sonic Boom está sempre bom tempo e a tormenta é mesmo a de escolher qual a malha a ouvir.
Se até aqui se tem ouvido que a tónica estética do álbum pende mais para Panda Bear, Everything’s Been Leading To This, canção de fecho, é vintage Peter Kember (em especial de discos como Spectrum). Efervescência de loops bem estendida ao longo de cinco minutos, de tempos que foram duros e de preparação para outros que também o serão, com uns intervalos como este para respirar.
E assim passa a música de entretenimento para arte e de arte para hierofania. Em O Templo Dourado, de Yukio Mishima, a personagem principal, Mizoguchi, jovem aspirante a monge budista Zen e cuja vida é um vazio crescente (que nem a Fé salva), encontra-se de tal forma dominado pela beleza do templo de Kinkaku-ji, que esta se tornou opressiva, ao ponto de que incendiar o templo se torna num acto de misericórdia e de libertação – bem, num reset.
A beleza do combate entre complexidade e simplicidade de Reset não leva a tanto, isto é, à destruição do que é belo. Bem pelo contrário, música deste calibre leva à elevação, bem acima de todos os que nos atazanam a vida e, sobretudo, de má música (que também existe, por muito que queiramos ouvir mérito em todo o som e acorde que se faça).
O que gostaríamos de ter ouvido no disco? Arqueologia da música popular portuguesa, quer tradicional, quer contemporânea – que muito tem para ser martelado em sample e colocado em loop. Aí sim, que há pano para mangas para um reset artístico – tipo ouvir o Malhão lá atrás em loop, como há uns anos se vaticinava em piada privada de hipsters relativamente aos AnCo.
Depois de dois anos cinzentos eis um antídoto formidável em forma de um dos melhores álbuns de 2022. Daqueles de dizer a toda a gente, talvez até berrar e de ser um pouco mais forte a cada dia, como reza Everyday.
Ao contrário do templo dourado, não precisamos de qualquer reset da beleza da música, só de um Reset, disco de arqueologia do passado e de antologia para o futuro. Vida longa a estas amizades e a estes combates.