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Num tempo em que nos bombardeiam com incertezas, mudanças forçadas e rupturas com costumes e práticas sociais à conta de motivos de força maior (leia-se de saúde pública), há quem procure um salto para o desconhecido como meio para chegar a um fim, o da mudança da sua essência. Por cá, na nossa música popular contemporânea, os Paraguaii empenharam-se nessa empreitada, a da redefinição da essência da sua obra.
A banda, oriunda da Cidade Berço Guimarães, anda nisto desde 2014 e é actualmente um trio, composto por Giliano Boucinha, Zé Pedro Caldas e Rolando Ferreira. E é com esta formação que deu ao mundo Propeller, quinto registo de originais da banda e uma tentativa de novo arrumo na sua identidade e obra, aquele salto definitivo que muitas bandas almejam mas que não alcançam. Veja-se se assim foi.
Peanut é um aperitivo vigoroso, uma mancarra provinda dos pads da banda e que é uma cabal declaração de intenções dos Paraguaii em Propeller: proceder à disrupção, abraçar nova identidade estilística (depois do jaez mais pop de Dream About The Things You Never Do e da abstracção de Kopernikus e ir longe como uns Moderat ou Mouse on Mars) e fazer um álbum que defina uma carreira. E, depois de ouvida a canção de abertura, é mesmo um aviso para que a rapaziada se prepare, que vem aí jarda.
Apreciável humor (não é exemplo único) em All My Feelings Fall in Love. Segundo single do disco, tem a melodia de voz a introduzir a peça, dando lugar a um sintetizador contundente, simulando o repentino aparecimento da paixão na nossa cabeça e alma – e uma ligeira reminiscência a esse enorme disco que é ƒIN de John Talabot. Sim, na alma, que (ainda) não vivemos numa distopia cyberpunk, mas com Propeller já teríamos uma banda sonora do mais adequado que há para tais tempos.
A electrónica dançante, o synth pop, a electrónica experimental psicadélica ou o que lhe quiserem chamar feita por cá passa por momento positivo – e bandas como os Paraguaii, Sensible Soccers, Ghost Hunt e Octa Push para isso contribuem. E, bem, ainda só estamos na segunda canção de Propeller, que capta o nosso interesse como em tempos Gamarra e Chilavert captavam a bola para si próprios.
Do potente tridente de arranque do disco, Insecure é a ponta mais pujante. A melodia é um contundente combinado de uns Units ou dos saudosos Delorean, com quebra introspectiva que só uma banda confiante consegue sacar. Boucinha prossegue no atrevimento de fazer da voz melodia e retoma-se o voo acima das nuvens para uns dois minutos finais soberbos, de pop mexida sóbria e com filigrana.
Por sua vez, Ground Control é deep house minhoto. É malha para encher uma tenda algures às tantas da manhã num after que se quer concorrido, com a voz de Giliano Boucinha a acrescentar uma textura que constrói uma atmosfera fantasmagórica – sem que a banda perca o controlo às máquinas. Também aqui se ouve a ambição artística da banda; dane-se essa coisa de fazer pop alternativa formulaica, vamos em frente pelo hiperespaço.
Contudo, se quisermos falar de canções cimeiras do disco, Phisique terá de ser trazida à colação. A banda desvenda, praticamente a meio, uma melodia cortante que, piadas intencionais à parte, dá benfazejo corpo à composição e o desenvolvimento da batida serve de catapulta de descolagem, como se a música fosse um E-2 Hawkeye a descolar de um porta-aviões, de hélices com throttle a fundo, devidamente controladas pelo elemento humano – como o elemento humano dos Paraguaii controla as máquinas e puxa pelo (nosso) físico.
Um dos grandes méritos (e prazer de quem ouve) da música electrónica – em particular da ambient – é o de ser ideal para converter em música, em sons devidamente encadeados e alinhados, estados emocionais. A partir daqui, tanto se pode despertar esses estados e/ou descrevê-los.
Dito isto, eis que os Paraguaii retratam, em Psychotic Scenes, as alfinetadas (ou mesmo facadas) na mente de quando a psicose começa, na sua primeira fase, a atacar a vítima e a transformá-la noutra pessoa, separando-a da realidade – assentaria que nem uma luva para descrever a psicose de Hans Beckert (pelo grande Peter Lorre) de M, obra-prima de Fritz Lang. E também aqui se sente a artéria house deste trabalho, recordando-nos uma Inner Acid do belíssimo Cerebral Hemispheres de Mr. Fingers; uma conexão apropriada entre o grande mestre de Chicago e os desafiantes vimaranenses.
Ainda no campo das influências, a de Cut Copy é evidente na banda em canções como Skeleton, mas a letra, tal como o pitch no teclado, é de desarmante humor pragmático português: “we are made of dancing bones” (interpretando: nós ossos que aqui estamos pelas vossas batidas esperamos, parafraseando os da Capela dos Ossos). Uma quebra anti-quebras e uma mudança de direcção (e de hemisfério) com uns toques de UK Garage recente para continuar a prender a atenção mas não os movimentos do ouvinte e temos mais uma canção que confirma a suspeita de que Propeller é mesmo um disco no qual os Paraguaii vão com tudo.
Fish Balloon fecha o álbum, numa toada minimalista, como uma abébia que os Paraguaii nos dão, uma oportunidade para descansar os ossos – que se querem dançantes, como é consabido. O melhor da composição são os seus últimos dois minutos, não porque o disco está no fim, mas porque já se adivinham uns quantos prolongamentos da outro memoráveis ao vivo, que aquela percussão puxa para isso.
Pontos assentes são os de que Propeller propulsiona efectivamente uma mudança na identidade dos Paraguaii e de que esta metamorfose é um salto qualitativo grande – os antecessores deste disco, tendo as suas qualidades, denotavam ainda certa indefinição (ou dúvida, mesmo) na construção do som identificativo da banda. Não é preciso chamar-lhe um momento Kid A da banda, mas apenas e só um ponto de viragem em que a banda se destaca definitivamente das demais. Disrupção plenamente almejada.
A banda arriscou indo para uma Foz do Iguaçu artística e venceu. Em boa hora olhou para a bússola estética, traçou um rumo e guinou para orientar a pista de dança para outras latitudes. E, bom, se nestes tempos não podemos fazer muito mais do que dançar isolados, então os Paraguaii cá estão para dar uma ajuda nisso.
Até porque o sonho comanda o homem, o homem a máquina e que, sempre que o homem sonha com a máquina, o mundo pula e dança.