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Quem espera, sempre alcança. Provérbio relevante em todos os assuntos da vida, também o é na música. Quem gosta de fazer jus ao ditado são os Putas Bêbadas, banda lisboeta de punk que serve de orquestra sinfónica não-oficial das Olaias e que tem, para além de nos moer expectativas, o condão de nos obrigar a esperar demasiado tempo pelos seus álbuns, lançando, neste ano de 2022, Nível Lounge, o seu terceiro registo de originais.
Grupo provindo do universo Cafetra, editora-constelação que marcou os últimos dez anos, estreou-se em 2013 com Jovem Excelso Happy e em 2017 voltou com Orgulho de Ex-Buds. Aguerridamente provocadores, são uma raridade num punk nacional que tem perdido mais vultos do que aqueles que tem ganho – tendo já de si poucos.
Compostos neste momento por Miguel Abras e Leonardo Bindilatti na secção de gritaria e ritmo e João Dória e Hugo “Sushi” Cortez nos serrotes com pickups, apresentam-se também fortificados na formação com a entrada de Íris Neves para as guitarras. Em óptima hora dão ao éter Nível Lounge, colecção de sete canções que deixam para trás janados chatos que pedem trocos, masturbação e demais problemas de pilas tortas e a metamorfose em bêbados de rua e dão o salto para caldeiradas maioritariamente nocturnas (ou não constasse no título o Lounge, poiso da noite de já longa história e mística) onde pululam conceitos surrealisticamente indeterminados e personagens que nem a própria Dona “Ceifeirinha” Morte sabe se estão mortas ou não.
O escárnio começa com a canção homónima. Titus Andronicus dos infernos, como se um quadro de Bosch fosse uma malha de punk sujo como o WC do Lounge ao fim de uma noite em que as salmonelas foram cabeça de cartaz na cerveja, a casa está demasiado cheia de personagens suadas e grotescas à procura de meia grama e suficientemente forretas para não comprarem a alma de uma pessoa. É de ficar possesso (num pit).
Este é um trabalho que não perde tempo com rodeios e vai logo à marreta. Arco da Velha é a mais longa canção de Nível Lounge e joga, de facto, em alto nível. No tecido necrótico em que se transformou parte das cidades deste País, os Putas Bêbadas dançam a dança da morte tendo o punk por foice.
Abras berra que é um hare krishna, uma divindade encarnada num prego no pão (com alho) e o alvo da sua ira um mero pecado com pernas, uma pastilha elástica no sapato metafórico de outrem. Procurem outro arcanjo, que a vossa salvação está, com sorte, no arco da velha. Senão, um Deus (Luxúria?) canibal espera por vós, arrastando e espetando o V/ distinto cadáver com o tridente das guitarras de Putas Bêbadas.
Francamente, não obstante as comparações que se possa fazer com Endless, Nameless, Dive ou demais material de Nirvana e de Melvins, os Putas Bêbadas vão construindo a sua identidade, nem que seja a desconstruir a dos outros, um tijolo nos cornos alheios de cada vez.
Pequenina mas trabalhadora no intelecto é Areia da Praia. Em apenas um minuto e quarenta e quatro segundos somos atirados para uma historieta de um Meursault luso numa qualquer praia com câimbras na língua para confessar o seu crime, enquanto o ex-hare krishna e agora juiz de julgamento Abras grita o mantra “é a Lei/é a Ordem”; mantra este repetido num pseudo-refrão a relembrar-nos as exigências de prevenção geral da lei penal (vide o artigo 71.º/1 do Código Penal).
Os Hüsker Dü do tempo de Land Speed Record ficaram com dor de cotovelo. Deve ser incrível tocar em Putas.
Seria redutor e intelectualmente desonesto categorizar o grupo como uma banda de comédia. Têm sentido de humor? Para dar e vender, desde que não se seja fraco de cabeça ou preconceituoso. São boa gente que curte tocar umas coisas.
Têm, também, uma perigosidade (nem que seja com as consequências que possam advir de dizer o seu nome numa ocasião mais formal, desafio que vos deixamos) e acidez deliciosas que já muito pouco punk tem. Uns Fear ou Germs à portuguesa afiguram-se como termo de comparação mais preciso.
Também são muito mais neste disco do que uns Biohazard/Cro-Mags (riscar o que não interessa) das Olaias. São, quando muito, uns Voivod do lo-fi, uns dadaístas dos três acordes, uns marialvas com napalm à cintura. Se a ressaca é a amnésia do exagero, como Abras escreveu em O Louco (in Bola Cheia), então a putaria é a religião da liberdade.
Mais ainda, também não lhes falta versatilidade. Se o material de Jovem Excelso Happy remete para Folk Implosion, No Age de início de carreira e para um Enemy Hogs de Oneida, a partir de Orgulho de Ex-Buds começa a toada mais melódica, mas sem cair em clichés medonhos e sensaborões para borbulhentos na puberdade que nunca ouviram Crime ou Flipper.
Consolidem, filhos, consolidem a Puta da Bófia. Porrada a monte, travagem para uma quebra gloriosa, com mais riffagem agreste e as vozes de Abras e Sallim entrelaçadas como um percutor embatendo numa espoleta de granada de mão. O conjunto da canção é a carga explosiva.
Violado o Cristianão e amesquinhado o agente do crime, estamos diante de um pelotão de fuzilamento como se fôssemos o Gary Gilmore. Depois da execução é REANIMAR, REANIMAR.
Como banda com sangue na guelra (e na sarjeta), não podia faltar uma (espécie de) diss track no álbum, Sandro e Sandra. Fizeram os monumentos a quem pouco os mereceu e agora aparecem os iconoclastas a mandar as suas estátuas de sal abaixo. Os punks do Chiado já cá não andam para ver isto, só o Afilhado d’O Empregado d’A Brasileira.
Agora já não se anda de battle jacket com remendos de Exploited e Crass a beber vinho de pacote e a cravar trocos na rua para dar na prata, antes manda-se vir qualquer coisa via Uber Eats a horas impróprias porque a rua não merece a nossa graça. O cavalo matou e a máscara FFPunk2 serve para nos proteger da mediocridade.
Da Fontes Pereira de Melo vai-se para Monsanto em velocidade vertiginosa pela terra de FOMO. Como em A Noite Chama Por Mim de Clockwork Boys, a vadiagem é uma necessidade do punk, desta feita em fluxo de consciência e em fuga dissociativa. A uma odisseia assim teríamos medo de faltar. Não esquecer a selfie com a companheira sombra numa story do Instagram ou então não aconteceu.
Por fim, Humilhação. O sétimo selo (nas trombas) dos orixás do noise das Olaias, o tal napalm dos marialvas a queimar o arcanjo outrora triunfante, num coral onde pontifica Raphael Soares. No mundo de Putas Bêbadas há anarquistas a cantar a Internacional e um C.E.O. sem firma, personagens que parecem de Craig Finn e dos Hold Steady, mas depois de um banho de psicadelismo que derreteu caras e consciências. Lá no fundo, nesta metafísica de tasco situado num buraco espácio-temporal, orgulho de ex-buds é Deus e o Diabo a discutirem acaloradamente antes do Juízo Final.
Nível Lounge é ácido sulfúrico de auto-ajuda para quem anda pela onda surrealista de madrugadas onde há cérebros paranóicos por sabe-se lá o quê, ouvidos destruídos por noise de guitarradas sem vergonha e palavras de um neo-abjeccionismo que é um Fado do 31 da pós-ironia. Uma jarda de preceito e um dos grandes álbuns de 2022.
Não é já possível escrever a História recente do punk nacional sem Putas Bêbadas. Num punk historicamente pobre, assumem já um destaque merecido não por exclusão de partes ou nivelamentos por baixo, mas pelo arrojo e pelo atrevimento, para além do adogmatismo destrutivo que é necessário ao punk à séria. Daqui a cem anos haverá putos a serem os mais fixes do canto do bar de realidade virtual ou assim quando mostrarem telepaticamente discos de Putas.
Que não lhes doa a putaria, que a gente adora Putas.