Salma e Mac

S&M
2024 | Edição dos Autores | Nova Música Brasileira

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Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar? Estas palavras não são deste escriba, mas antes de Drummond de Andrade e bem podem resumir (juntando-se-lhes umas guitarras) a obra de Macloys Aquino e Salma Jô, casal de longa data e dínamos criativos de Carne Doce, banda que bota perna no rock dito alternativo, no que se pode chamar de Nova Música Brasileira (ou, em alternativa mais estrita, neo-MPB) e, ainda, no dub.

Desta feita, trazem à baila S&M, disco a dois gravado na intimidade do lar (as vozes foram-no no estúdio, contudo) e que conta, entre outros, com convidados como Frederico Valle (baterista da Carne Doce) e os percussionistas Sinho Cunha e Noel Carvalho. Também os arranjos de saxofone e flauta de Rozinaldo Miranda são fundamentais na estrutura e na qualidade do álbum.

Na capa, uma Salma gargantuesca tem Mac preso pelo pescoço e lança-nos um olhar de desafio como se fosse para o devorar. Porém, a refeição aqui é mesmo a reflexão sobre desejo, provocação, arrependimento, solidão e seus efeitos que, por vezes, redundam em selvajaria. A sigla do título do álbum resvala assim para algo escrito por von Sacher-Masoch e teorizado cientificamente por Freud, se é que nos fazemos entender.

É com uma Selva que arranca S&M. A selva do atrevimento do desprendimento (“Se outra vez me vir chorar, não tenha pena, não é de tristeza, é que esse livramento deixa a vida uma beleza…”, bem à moda de Cecília Meireles), por entre o fatalismo dos machos e a curiosidade pelo irracional, num terreno musical familiar para os fãs de Mac, Salma e de Carne Doce – que linha de baixo de Marcos Paulo Barbosa, já agora.

A atracção irresistível pela taradice solta-se em Diva, canção-confissão de todos os pecados (e uma das campeãs do álbum). Numa óptima roupagem neo-MPB, canta-se o fogo que arde sem se ver de Camões, dando-se continuidade à soltura dos bichos na metamorfose pessoal de Capeta, aqui numa evocação do Tim Maia de oitentas. Por seu turno, a escorreita letra de Astral dá lugar a uma sequência instrumental notável, incluindo um solo e tanto de saxofone.

Os tempos da placidez de Voo Livre já lá vão, que por muito que se corra o bicho de S&M come à séria. Afigura-se que A Coisa Mais Linda Que Existe de Gal Costa continua bem presente por estas paragens, ainda que agora se passeie pela casa de lingerie proibida a menores de dezoito anos, de saltos altos que intimidam qualquer equilibrista e um chicote cujo estalo se ouve nos planetas ao lado.

E que, no entanto, não magoa ninguém, nem mesmo quem quer apanhar, como ronrona Salma em Passivo, pelo meio do abraço dos acordes de Mac. O saxofone e os sopros de Rozinaldo Miranda são aqui uns voyeurs que por vezes soam bem marotos e cujo dourado passa a corado (e bem suado, que a temperatura subiu a pique), ajudando a consolidar toda a sacanagem.

Mas será só o saxofone o voyeur neste boudoir sónico? Não, também os ouvintes se transformam em observadores (e igualmente rosadinhos das ventas) destas taras e manias (RIP Marco Paulo). Estamos que nem moscas na parede a ouvir as pulsões e as frustrações do coração das letras enquanto batemos o pé (ou as patas) com a parafernália rítmica do disco.

Mas só há lugar para sensualidades neste disco? Nah, que Continha lembra-nos, com humor mordaz, que a sovinice no amor também se paga cara e com juros. Salma e Mac viram economistas do coração e explicam-nos a teoria do custo de oportunidade associada ao romance (“se eu ficar com você, vou ter que dizer não pro seu amigo”) concluindo que, afinal, o amor é um bocado como o capitalismo: é lucro e prejuízo.

Na descrição do álbum no Bandcamp, o duo estabelece que o álbum está dividido em duas partes: a primeira, de sensualidade (como bem acabámos de ouvir), e a segunda, de vulnerabilidade. Depois da junção, a separação. Depois da exaltação, a decepção.

Cumprindo adivinhar a fronteira emocional de S&M, dir-se-ia que esta é atravessada em Alguém. Quando a falta de paciência atinge o ponto de ebulição apaga-se a memória do outro, foge-se do sufoco (assim que nem Alcione há umas décadas) e nasce um baladão com classe para dar e vender, cheio de fundo emocional e despojado de piroseiras típicas das baladas de amores.

O tandem de Tarefa e Distância revela um outro chicote, cuja porrada dói mais do que o de cabedal: o da saudade. Tarefa e seus arranjos e ritmo constituem, para nós, a melhor canção do disco. Afinal, como canta Salma e Mac magnificamente dedilha (e uns belíssimos arranjos), o calor e a palavra do outro são precisos.

Este ensejo tem continuidade em Distância. Em mais uma demonstração de que guitarra e saxofone são sinónimo de intimidade, quer-se espaço entre nós e a solidão, quer-se uma bússola sentimental que dê cabo da desorientação que vai cá dentro, numa alma sem nadica de nada.

A um álbum de uma dupla faltava um dueto: eis, pois, 402. Entramos por uma casa adentro e nos mais prosaicos detalhes do lar ouvimos que até neles há coisas do coração. Com toda a simplicidade de uma guitarra e duas vozes fechamos a porta do número 402 e o disco.

Aqui chegados, dizemos com propriedade que a química criativa de Salma e Mac atinge aqui um zénite em relação a trabalhos anteriores. A dupla tem maturidade que chega e sobra para abordar os extremos de uma relação sem entrar nos lugares-comuns da choradeira e das perdições amorosas daquelas em que se fica de cornos no ar; pelo contrário, com malandragem nas palavras e os acordes e arranjos certos (quem dera a gente bem mais badalada por críticos e promotores fazer uma exploração sónica destas) constroem observações e vinhetas que são já parte de um corpo de obra brasileiro contemporâneo com um braço cuja mão está dada ao passado.

Atenta a temática e o percurso da dupla, sugerimos que a sua carreira se esteja a constituir como a construção de uma série de reflexões sobre o amor e as relações – ou, melhor dizendo, a sua relação.

Gaita, que ninguém avisou que o clima em Goiânia tinha aquecido vertiginosamente.


sobre o autor

José V. Raposo

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