Salma e Mac

Voo Livre
2022 | Edição dos Autores | Bossa Nova, MPB

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Quantas vezes a cumplicidade de uma relação íntima não se transforma num elemento fundamental da obra dos artistas, seja em conjunto ou simplesmente por construírem a sua obra na mesma arte? De Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes a Georgia Hubley e Ira Kaplan, exemplos não faltam. Este é também o caso de Macloys Aquino e Salma Jô, casal fundador dos Carne Doce, banda brasileira que se movimenta à vontade entre o rock alternativo com forte pigmento de Brasil e a MPB. Com Voo Livre levam a cabo a sua estreia em álbum.

Produzidas por Alexandre Kassin (perito em colaborar com nomes de hoje, como Salma e Mac, e de ontem, como Caetano Veloso e Erasmo Carlos) e contando com a colaboração de Leonardo Reis na percussão e Felipe Pacheco no violino, as oito canções  de Voo Livre traduzem a aludida cumplicidade pessoal e artística entre Salma Jô e Macloys Aquino, percorrendo uma panóplia de sentimentos que perpassam por uma relação amorosa. Kassin contribui ainda com uma paleta instrumental que dá riqueza ao disco, enquanto que Aquino e Jô continuam na sua senda de tratar assuntos das emoções com certo humor e sem complexos.

Isto de abraços e amores é muito giro, mas de vez em quando é preciso descolar da pele do outro e ir por aí, mostrando-se como se é e sendo-se como se pode, como cantaram os Novos Baianos. Fantasia de acordes simples, risonha e desprendida com um gin tónico na mão algures num sítio solarengo onde ninguém nos conhece e para onde se partiu sem planear (pelo menos até onde a conta bancária deixe), eis Gringa.

E quando se volta do sol com uma Marquinha a coisa só podia dar invejinha. Um veneno gostoso à la Rita Lee atirado a quem está roxo de inveja e, por cima, a fumegar com a derrota da perda; e foi com esta perda, que nos é atirada numa cama de Bossa Nova, que o playboy cabeçudo passou a dar valor. Quem não quis as marquinhas na pele já não pode navegar à volta do farol.

Por seu turno, aqueles que se preocupam e estão atentos aos pormenores da contraparte no negócio amoroso têm direito a “amor na cama, banho e mesa”, à pele de galinha com pele de galinha, à verdade que ninguém vê de Vinicius de Moraes, à Sobremesa. Um portento de afecto na veia de A Coisa Mais Linda Que Existe de Gal Costa (RIP), cinco décadas depois. O seu legado está bem continuado.

Destaque para Na Pele. As subtilezas de uma traição expostas numa cara que cora, o sangue a denunciar que há outra pessoa no horizonte; o traidor cumpre “contrato” com a pessoa com quem se comprometeu enquanto pula a cerca. Instrumentalmente, é Dylan de começos de setentas, com a voz de Salma Jô a impor uma aterradora desilusão, daquelas tão grandes que nem se consegue levantar a voz. Num álbum sobre o amor e as virtudes de uma vida a dois é uma (notável) canção sobre uma traição que está no seu topo – ou não fosse esta um dos perigos maiores do amor.

Se uma é destaque, a outra é a campeã da Copa de Voo Livre: Cetapensâno. Se já caracterizámos a obra dos Carne Doce e de Salma e Mac como MPB contemporânea (ou neo-MPB, vá), nesta malha estamos perante uns arranjos de violino e uma voz de Salma a puxar forte e feio, a levar Bill Callahan e Bonnie “Prince” Billy a dar uma volta por uma qualquer avenida larga de Goiânia. Rensga!

Se já se tratou da inveja, em Voo Livre canta-se sobre a paranóia da existência de uma traição. A ansiedade é uma arma de destruição maciça e o próprio amor é imprevisível, carecendo de vento para se manter sustentável. A voz quase trémula acompanha os acordes em busca de algo melhor no meio da incerteza sentimental, de um final feliz que chega com a união de ambos num voo livre de coração.

E quando o amor vira ódio? Em Hater não se fala de uma inimiga qualquer que odeia a Narradora, mas sim de quando se tem o inimigo dentro de casa, entrincheirado na cama, como um odiador de estimação – como quem ama odiar. A receita de Salma e Mac é simples: uns acordes dedilhados com ginga e fazer à Michael Corleone e ter os inimigos por perto, para ficarem de cotovelos a arder com o sucesso, MPBzando na cara das inimigas.

Capacho encerra o álbum e é a canção mais emocionalmente exigente deste, aveludada notavelmente pelo violino de Felipe Pacheco. O alvo da narração parece um Severino de A Vénus das Peles, isto é, um gajo que curte levar porrada, que gosta de ser fraco, de ser capacho. E de quão difícil pode ser amar alguém assim, de quão complicado é amar alguém que prefere viver num poço de completa falta de auto-estima e amor próprios.

Que o capricho é ser capacho (admirável enlace sugestivo da letra), de isso ser a chave que destranca a porta afectiva de quem narra. Se Macloys cumpre com distinção na guitarra e Salma continua a dar igualmente forte e feio na voz, os arranjos de violino são fundamentais para estabelecer a tensão emocional da canção, que é também das melhores de Voo Livre.

E é mesmo de um voo sobre as várias dimensões do amor de que o disco de Salma e Mac trata: carinho, afecto, ódio (sim, também lá cabe), inveja, ciúme, traição, sensualidade, insinuação, dependência. Não se sabe se reinventou a roda da Bossa Nova ou da MPB, mas mostra que estas são perfeitamente actuais se forem bem trabalhadas, como se afigura em Voo Livre.

Não se deixem enganar pela calmaria sonora, que a parada é de corações ao alto. Apesar de igualmente calmo na melodia e no ritmo como (por exemplo) Fiel ao Romance de Almirante Ramos, disco de peito aberto nos seus ideais mas contido na mensagem, Voo Livre é para aqueles que querem os calores da orgia e do prazer – e, de certa maneira, o aperto da dor. Porque quem voa livremente também se espeta de vez em quando.

Se João Gilberto em tempos cantou que já chegava de saudade, então Salma e Mac cantam hoje em dia que chega de solidão, que não há espaço para ela.


sobre o autor

José V. Raposo

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