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Passe o chavão, há uma série de bandas e editoras que simbolizam o crescimento em quantidade e qualidade da música portuguesa da última década; de entre estas, estão os Sensible Soccers. A banda, que se diz do Norte do País – tendo tornado Fornelo em localidade mítica, leva dez anos disto e, diga-se, é de pleno culto e ameaça tornar-se numa instituição – pela identidade construída e, sobretudo, pelo material que produz e como o toca ao vivo. Depois das saídas de Emanuel Botelho e Filipe Azevedo, são agora coadjuvados, nesta sua quarta fase (segundo os próprios), por Sérgio Freitas (sintetizadores) e Jorge Carvalho (percussões). Se ao vivo Manuel Justo (melhor dizendo, Né) e Hugo Alfredo Gomes continuam frente-a-frente, numa disposição já imagem de marca dos Sensible Soccers, André Simão (também dos Dear Telephone) consolida a posição na banda, mercê do seu baixo e pads, que novo fôlego rítmico deram à banda – este é, então, o trio titular desta fase.
Após uma primeira audição, Aurora é um disco mais introspectivo, com uma estrutura diferente de 8 ou Villa Soledade; não se procurou incluir umas quantas canções mais experimentais, outras mais virtuosas e os portentos dançáveis, como o são AFG ou Shampom. É um disco de reflexão e de memória; de revisitação do passado para memória futura da banda e da própria memória e identidade dos seus membros – Hugo Alfredo dedica o disco à memória da mãe. Não é um álbum de fácil percepção e abordagem como os anteriores, mas cresce a cada audição e, como já tivemos oportunidade de testemunhar, respira e bem ao vivo.
Estamos perante uma espécie de colagem em forma de mixtape ou de, como os próprios afirmam no seu Bandcamp, de uma aventura de descoberta de fragmentos – com efeito, há-os de vária natureza no álbum: fulgurantes, melancólicos (como um começo de Setembro…), virtuosos ou, bem assim, aventureiros, na percussão ou nas melodias construídas, que agora temos mais um par de mãos a dar tudo nos synths, sempre com um substrato de reminiscência.
Reminiscência essa que parte em Como Quem Pinta. A toada do álbum é dada logo aqui: se se procura recordar a infância (sobretudo de quem nasceu nos anos oitenta), nada melhor do que arrancar um álbum com uma canção que é um encontro do genérico do saudoso 70×7 da RTP com a actual música portuguesa dita alternativa; todo o acervo de programações e teclados dos Sensible Soccers com a influência rítmica de B Fachada e da nossa própria música tradicional. Se a coisa começa assim, não tarda nada estamos a chamar “reclames” aos anúncios.
Tendo já tido a oportunidade de testemunhar ao vivo o seu fulgor, diz-se alto e bom so-, escreve-se com toda a propriedade que Farra Lenta é das grandes canções de Aurora. Antropomorfizando a sonoridade da banda, entramos na sua mente e assistimos ao desenrolar de mais um momento daqueles dos Sensible Soccers: o crescendo de intensidade da batida e dos sintetizadores, sem nunca se cair na monotonia, tendo por corolário mais um capítulo de sonoridade única entre nós.
A farra não pára, que está logo aí Elias Katana. A banda tem tentado o afastamento do imaginário futebolístico (com sucesso, ainda que haja sempre saudades nossas dessas referências) mas, para nós, mantém-se no imaginário infanto-juvenil (sem cair em imaturidades ou infantilidades), cruzando a banda sonora de um Donkey Kong Country (sdds Super Nintendo; comprem uma Classic) com Tangerine Dream – caminhando para o fim numa mescla à moda de Psilosamples. Mais uma malha de topo de Aurora.
Chavitas podia ser o grande single de regresso de Silver Pozzoli ou dos Alphaville ou, já que o álbum remete para viagens intermináveis por estradas nacionais, para uns Ópera Nova ou, claro, para uns Heróis do Mar. Ponhamo-la em palavras: imaginem-se ouvindo esta canção em cassete num Renault 5 ou numa Ford Escort a caminho do Algarve algures nas últimas décadas, depois de um cozido no Canal Caveira ou de uma mariscada algures na costa alentejana, enquanto a brisa da sombra de uma estrada nacional vos refresca as ventas porque pas de ar condicionado e aquele camião mesmo à vossa frente teima em lixar-vos a ultrapassagem. Orelhuda até dizer chega, mente quem disser que não bate o pé com ela ou assobia a melodia.
Com Fenómeno de Refracção podemos afirmar, alto e bom som, porque é que gostamos dos Sensible Soccers há uma data de anos: porque, tal como eles, adoramos estes fenómenos mitológicos à portuguesa das couves gigantes, caixões de celebridades com a renda arranhada (ou a morte de Saúl Ricardo), ratos gargantuescos no Convento de Mafra, Sousa Cintra aka o assassino de garrafas e vidros de automóveis ou o grande Manuel Subtil, esse ultra dos juízes dos tribunais superiores portugueses. Pois bem, combinar vídeos de notícias do suposto tsunami do Algarve de 1999 com umas pitadas de Terry Riley resulta numa pérola de Aurora. Ah, tecnicamente chama-se fata morgana ao fenómeno, pessoal.
Já em Import Export sente-se Jon Hassall e uma vontade de crescer ao vivo como aquela em que se cresceu na vida. A paleta de sons continua a crescer ao longo mais de cinco minutos e meio, sempre com gosto e como um sol nascente. Bichos do Soto (presumivelmente uma referência ao local de gravação do disco, a Casa do Soto, em Arouca) é das canções que serve de elo entre Villa Soledade e Aurora, aquela ponte entre os tempos de Bolissol e Nunca Mais Me Esquece; mas, também, a nosso ver, de homenagem subtil a Galinhas do Mato de José Afonso – ora ouça-se a própria Galinhas do Mato.
Digna de uma playlist de discoteca de Verão é Luziamar – afigura-se-nos que dedicada ao complexo turístico de Viana do Castelo, entretanto degradado. Quantas futeboladas, encontros fortuitos, mergulhos e alegrias estivais poderiam ter sido registados ali em VHS com esta mesma malha como banda sonora? Muitas, digamos. Até porque Luziamares não faltam por esse País fora – evoquemos a Tróia pré-José Sócrates armado em perito em explosivos.
Para além de ser das melhores músicas de Aurora, é também símbolo da actual fase da banda: o que restava de guitarras foi agora subtilmente substituído pela supremacia dos sintetizadores e dos pads – eis, pois, a consolidação do trio Gomes-Justo-Simão, sempre com a identidade intacta, que há algo de familiar na música dos Sensible Soccers que nos remete imediatamente para eles. E esta talvez seja a sua maior vitória em todos estes anos de actividade: um som próprio, só seu.
A melancolia de Um Casal Amigo leva-nos para um conto que poderia ser de John Carpenter (imagine-se uma adaptação ao cinema do Massacre da Praia do Osso da Baleia). Quiçá a mais bela canção de Aurora, para além de ser a mais contemplativa.
Em Telas na Areia sente-se, mais do que nunca, a presença de André Simão; o baixo deste é o número 10 da canção, o ponto rítmico fundamental. Para além de (bem) dançável, bem podia ser banda sonora de montagem em vídeo sobre imagens de um Verão anterior a 1998: ouçam-na e lembrem-se de passear debaixo da bola da Nivea enquanto comiam um Cornetto, viam em casa Tarzan Taborda e Macedo a comentar a luta livre e ouviam Snap!, grunge, Metallica ou Sonic Youth no walkman numa praia em 1991 ou ‘92, com o jornal desportivo na mochila a comemorar o Mundial de Juniores de Queiroz, Figo, Rui Costa e companhia (ou viam o Sporting de Balakov, Yordanov e Figo, já agora) e, sorrateiramente, fitando os primeiros topless (ou Cicciolina em São Bento) a que a banda alude na descrição do álbum no seu Bandcamp. Serão estas as telas dos fragmentos da memória?
Seja numa qualquer playlist em 2019 ou no gira-discos do DJ Top Jackpot em 1986, a Aurora não é coisa que se imagine em sítios onde não se vai; é, outrossim, mais uma era na História dos Sensible Soccers, um título, um galhardete neste seu novo plantel. Passe novo chavão (ou chavitas), é mesmo (mais) uma aurora na obra da banda.
Se não puderem imaginar aquelas viagens de infância nos idos de oitentas e noventas e toda a nostalgia que daí advenha (até porque podem já nem ser desse tempo), ponham Aurora a rodar, que chega e sobra. É memória e basta.
P.S. – Nunca joguem o Sensible Soccer sem ser no Amiga, porque na Mega Drive só levam no focinho, como foi o nosso caso. A culpa era do comando, claro.