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Desde há nove meses (Março) que estamos num ano distópico e, a espaços, sufocante. Para qualquer melómano esforçado, falta encontro de comunidade (“cena”, se preferirem hipsterices e tribalismos) por não haver música ao vivo nos formatos e quantidades desejáveis. Porém, não tem faltado criação, incluindo em Portugal – e criação arrojada. Serpente, projecto de Bruno Silva, é um desses casos de arrojo, através deste Fé/Vazio.
Um adjectivo que assenta (que nem uma boa batida num sample certeiro) ao Autor é “singular”. Ora veja-se: divide-se em três projectos de qualidade – Sabre (com Carlos Nascimento), Ondness e Serpente – e toca guitarra com Sei Miguel no seu Carro de Fogo e em trio; temos, assim, a singularidade de colaborar com nomes de peso de um passado recente e de se ter tornado ele próprio num nome a ter em conta por quem queira perceber como são os criadores de sonoridades deste País. Isto tudo sendo também um homem de família e um ouvinte sem preconceitos, desde death metal (Bolt Thrower até ao osso) até aos prazeres mais pop de todas as décadas, de Prince a Beyoncé.
Da curiosidade deste ouvido ressalva-se imediatamente (e mencionado pelo próprio, de resto) o título do trabalho: Fé/Vazio. Lembrança de um dos melhores discos de hardcore de sempre, o mítico split dos Faith e dos Void (Dischord, 1982) – uma edição de certa maneira iconoclasta e inovadora (pela violência brutíssima) do hardcore de oitentas. Passe-se ao exame.
Tenso arranque com Rainhas. Dos vários elogios que se pode fazer à composição, escolhemos este: numa era de fulgor dos jogos de vídeo indie que muito sorvem do tempo dos 16-bits, haja alguém que pegue nesta malha para um remake de um clássico da época. Ou num longo plano contínuo num thriller – também aqui se ouve a versatilidade da obra de Bruno Silva.
Tal como em Rainhas, a batida de Nível de Fumo remete para plena exploração; o caminho a trilhar é mesmo dentro de um labirinto e de preferência com estados mentais diversos, a tender para o psicadelismo, como o Autor bem refere nas notas no Bandcamp. Mais do que Anthony Shakir, aqui fazemos um paralelo com a inovação percussiva de Naná Vasconcelos em Macacos “Corpo” (de Zumbi) – e este não se fica por aqui no que toca a presença em Fé/Vazio. E, bom, a broken beat de nomes como Agent K é o cabo preso à cintura para a gente não se perder no tal labirinto.
Fé/Vazio é uma cruzada, uma aventura que pretende lançar novo capítulo da electrónica nacional, em saudável importação. E, bom, Visitação é, no seu sóbrio frenesim, um encontro entre o que Bruno Silva tem vindo a desenvolver em Ondness (ouça-se Chance de Turf), o dub e uns Orbital ou Forest Swords – uma visita autêntica, portanto.
Em termos de extremos, Razia talvez seja a maior projecção de fé contra o vazio. É o éter invadido pelo neo-kuduro da Príncipe e da Enchufada e por um fundo de vigor techno ou algo que o valha – como uma Manhood de Vikter Duplaix lúgubre e sem vozes nem rodeios, apenas e só o esqueleto do ritmo. Autêntica transição de uma hipotética república moribunda para um império, um portento de força. Ou, no contexto do álbum, de uns pontos de referência para outros, nos dez minutos centrais de Fé/Vazio.
Estamos perante um estudo rítmico e de prospecção de como será o futuro da electrónica e do seu desenvolvimento em Portugal, usando uma drum machine como laboratório. Honesto e sem peias, cumprindo os ditames do empirismo e ampliando o que vinha sendo feito em Parada e Bongo Mania Fantasma Tools.
Numa nota conexa, diga-se que muitas bandas e artistas raramente discutem ou referem as fontes que os influenciam, quase como se tivessem receio de algo – seja de acusações de plágio ou de que a leitura de outrem seja mais apurada do que a sua. Não se pode dizer tal coisa de Bruno Silva nem deste seu Fé/Vazio.
Quando o próprio elenca Don Cherry como parte integrante do ADN do disco e na procura do seu espírito criativo (tal como o de Alice Coltrane), qualquer ouvinte informado será levado a concordar. Estamos já na segunda parte do trabalho e uma faixa como Em Sendo é uma reconversão futurista (à falta de melhor termo) do enlace artístico que Cherry e Naná Vasconcelos levaram a cabo em Dissolution (de Om Shanti Om, gravado em 1976 e só este ano editado).
Escalpe abana-nos o couro cabeludo; mas não é apenas um escalpe, são vários. Do ponto de partida de Rhythm Invention para uma Landmass de Future Sound of London ou de uns Fluke. Metamorfose da serpente para peixe sónico de águas turvas, movendo-se entre águas ácidas e profundas, na dicotomia final de Fé/Vazio. Não houve lugar para melodia, o ritmo é rei e senhor nesta coluna.
Não sabemos se desta trapalhada muito séria a que se chama pandemia sairá um Homem novo, mas deste álbum poderá e deverá sair algo que influencie a experimentação electrónica com o ritmo por tempos vindouros, como o Übermensch de Nietzsche influenciaria a História e seria um exemplo de superação, lá está, do vazio. Certo é que enquanto não reabrirem as salas e as pistas de dança temos aqui mais um elemento para continuar a pensar a música electrónica. Recorrendo à anamnese, uma carga rítmica destas é tão mexida (e suada) quanto um pit do velho hardcore – tudo uma questão de curiosidade auditiva e de intensidade.
Um disco livre, sem amarras estilísticas, antes reverência e curiosidade. É um dos álbuns por onde se contará a História da música popular nacional de 2020.
Abençoado e muito respeito.