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O ano era o de 1979. Vitória retumbante dos Conservadores de Margaret Thatcher (desastre à vista), acidente em Three Mile Island, o punk de 1977 moribundo e a juventude britânica entregue ora ao fato e gravata da juventude azul, ora ao batido casaco de cabedal punk ou simplesmente à modorra de uma vida banal de calças à boca de sino e ao enfado musical mais popular. Uma certa banda, que não fora pioneira no punk mas que o aperfeiçoou, que assinou por uma multinacional e que levou a declarações de óbito do punk, desembarca em Heathrow após a sua primeira digressão pelos E.U.A. (país que já não os aborrecia como em ’77) e atira-se para ensaios, que as ideias fervilhavam. Os The Clash, o punk e a música popular ocidental não mais seriam os mesmos.
Corria o ano de 2000. Um adolescente residente no subúrbio de Lisboa num País de democracia mais ou menos consolidada (já não estávamos no tempo de jornais de partidos de “””vanguarda””” chamarem “reaccionários alienados” ou aleivosia do género aos punks) perdia a fé no seu mito sebastianista: o do regresso do grunge e das suas bandas de proa à ribalta e ao domínio das rádios e TV.
Os Silverchair e os Bush eram uma fraude (“pessoal de roupa bonita mas sem nada para contar”, como nos relatou Allen Halloween, ele próprio um fã de grunge) e uns Radiohead, Sonic Youth, Smashing Pumpkins, Blur, Oasis, R.E.M., Smiths, Tom Waits e Pavement começavam a tomar definitivamente o lugar nas cassetes do dito rapazola, que pouco ou nada sabia de punk. O Eddie Vedder e o Billy Corgan eram estrelas, sim, mas parecia que pouco tinham a dizer para lá da música. Tinha de haver alguém diferente, marcante.
No Natal de 1999, na defunta Virgin dos Restauradores, a busca por uns disquitos para ouvir na quadra não lhe rendeu grande coisa, salvo uma compilação “dos gajos da Rock The Casbah”, denominada The Story of The Clash, vol. I. Gostou das primeiras e das palavras do pseudónimo de Joe Strummer sobre Lisboa. Pôs-se a gravar os dois CD da colectânea na véspera de uma visita de estudo ao Palácio da Pena – o monumento uma metáfora perfeita para a obra dos Clash – nos meses seguintes e o resto é chavão: depois do ribombar da bateria de London Calling nada mais foi como dantes. Entre 2000 e 2005 não houve banda mais influente na construção do seu gosto musical do que os Clash. Eram oração diária.
Adeus, grunge. Morto e enterrado, remetido para a irrelevância da atenção de um jovem. Cinco minutos de solo de Mike McCready nuns Pearl Jam ao vivo no Restelo não chegam aos calcanhares dos solos de London Calling e Brand New Cadillac.
Também com os Clash continuámos a desenvolver essa ideia de trabalho é trabalho, conhaque é conhaque: numas vezes joga-se à bola perto do estúdio para retemperar ideias e consolidar a equipa, noutras fecha-se em trabalho, seja num escritório ou nos estúdios Wessex. Sem nunca sucumbir à resignação de uma vida banal, como a cantada em Lost in the Supermarket. Isso do nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer sem glória, de existir em vez de viver não é para nós.
Como é possível viver assim depois de se ouvir Clampdown? Note-se: a música era complemento a leituras de variada ordem e de contacto com gente sábia na escola e na Universidade, que revolucionários de pacotilha do rock’n’roll têm de cessar – os próprios Clash correram várias vezes o risco de cair nessa caricatura. Mas, bom, quando uma Spanish Bombs nos leva a ler os dois volumes sobre a Guerra Civil Espanhola de Hugh Thomas é porque a música tem fundo e gravitas.
Como se de uma epopeia clássica se tratasse, o elenco de personagens míticas de London Calling não se resume apenas a Joe Strummer, Mick Jones, Paul Simonon e Topper Headon. Johnny Green (e o seu comparsa, Baker), Kosmo Vinyl e Guy Stevens, respectivamente tour manager, bobo da corte e produtor, dão pano para mangas, por entre mortalhas e cassetes perdidas no metro e saravás no meio-campo de Highbury, antiga casa do Arsenal. E um Sancho Pança para meter tino na cabeça do génio Stevens: Bill Price, engenheiro de som.
Stevens quebrava as regras de bom funcionamento de estúdio e era um dínamo: de segredar para si próprio a partir cadeiras era um golito de tequila. Preparava a banda para takes como um realizador prepara um actor do Método para soltar os bichos à frente da câmara: por vezes à porrada.
A química de uma das grandes secções de ritmo de sempre (nunca esquecer que Simonon acabaria por tocar um baixo sem trastos em 1981) e a admirável dupla Strummer/Jones tratou do resto, com ou sem volume no 11 nas pistas todas ou com Mick Jones a levar com um escadote até levitar emocionalmente os seus acordes.
Com estes, um futuro artista de variedades de jornal e zine aprendeu a importância do local onde se colocam microfones na bateria e nos amplificadores para um input decente e consequente magia na produção e na mistura e o output ser um disco intemporal. Ou da melhor altura para obter rendimento dos músicos e do cuidado em escolher os melhores takes (nem que seja para evitar a fúria do produtor).
Para além do belíssimo título, Hateful é um portento pop que bem podia ser o local de nascimento da new wave. Rudie Can’t Fail vai pelo mesmo caminho, uma peregrinação reggae e ska que nos obrigou ao trocadilho com o autocarro que apanhávamos na altura: on the route of the 23 bus. Já o amor aos arranjos de sopros no rock começou nesta canção, em The Right Profile e em The Card Cheat, onde aprendemos essa coisa da Wall of Sound de Phil Spector.
Esta última é “A” canção do álbum. Fosse uma pintura e seria um tríptico de Bosch, atenta a quantidade de coisas a acontecer. O ambicioso solitário da letra podia ser Raskolnikov, uma personagem de John Ford ou Fernão Mendes Pinto. Jogar para ganhar e para não morrer, enquanto os Irish Horns tornam a muralha de som mais poderosa do que muito metal e techno, uns arcanjos de fanfarra militar ou da Stax. E o piano a tornar todo o conjunto num clássico complexo e subvalorizado dos Clash.
Gaita, sabes que tens um disco do caraças quando até Guns of Brixton, a canção sobre tensão racial nos bairros degradados de Londres cantada pelo teu monocórdico baixista é boa.
Enquanto sportinguista e boleiro na altura, naturalmente que Wrong ‘Em Boyo (levantada aos The Rulers) é para rebentar com cordas vocais na Curva Sul e para aprender a lenda de Stagger Lee, tão constante no disco. E enquanto cidadão de um País que assistiu a vergonhosas cenas de vira-casaquismo político-intelectual nos idos do PREC, de radicais de esquerda e de direita virados “democratas” (diz-se “tachistas”), estes versos de Death or Glory caíram que nem ginjas: “he who fucks nuns will later join the Church”.
Até aqui falámos apenas e só de estúdio. Ora, mercê das teclas do órgão de Mickey Gallagher e da forma da banda, o melhor período para bootlegs dos Clash é mesmo 1979/80 – adivinhem com quem é que aprendemos o que são aqueles? Cleveland ’79? Palladium de Nova Iorque (ouçam o baixo de Simonon a partir em “White Riot” e uma fotografia essencial de Pennie Smith a nascer) de 21 de Setembro de ’79? Boston em ’80? Hammersmith Palais nesse ano? Escolham. Nos palcos acabou o punk de ’77 e começou a imortalidade.
A ironia? Nunca vimos nada do universo Clash ao vivo. Faltam máquinas do tempo para recuar até Cascais a 30 de Abril de 1981…
Como em tudo a que as multinacionais deitam a mão, o punk foi transformado em mercadoria. Sejam rebeldes e abram a vossa próxima cerveja com um abre-garrafas dos Sex Pistols ou usem uma t-shirt do CBGB’s como se fossem frequentadores das matinées de hardcore. Rebeldia a metro, forma em vez de conteúdo.
Mas isso já sabemos – cabe-nos evitar o engodo.
Tudo isto tornou o dia 22 de Dezembro de 2002 para lá de triste. Pela SIC Notícias e pela Sky News soubemos da morte de Strummer, líder de quem tanto nos disse – logo no mesmo dia da morte de D. Boon, seu discípulo, este dezassete anos antes. Aqui começou nova vaga de descoberta dos Clash, sobretudo de London Calling para a frente.
O Reino Unido de 2019 acha-se em novo corte com o continente, via Brexit; é uma chavolândia vendida ao Mundo, uma economia pretensamente aberta com uma City com laivos anti-nacionais e democráticos, merecedora de maior tributação e fiscalização. A vitória Tory deste ano foi ainda mais esmagadora do que a de ’79 e os Trabalhistas continuam sem saber o que fazer – Corbyn é um lixo pós-moderno para “elites” dessa cloaca que é o Twitter, tendo em paralelo com James Callaghan os disparates que originaram maiorias Conservadoras.
Ao contrário de Boris Johnson, os Clash ao menos sabiam o que é um raio de um pente.
Grupelhos eco-fascistas burgueses de pendor apocalíptico como uns que pregam por extinção protestam (?) prejudicando as viagens de metro e de avião do povo, do alto da sua sobranceria de trust fund e falso saber universitário. Assemelham-se à National Front de setentas no arrivismo e na droga ideológica. E o Brexit pelo meio, cravando uma estaca entre os fundamentos da democracia e a razão de Estado. Afinal, 1979 não está assim tão distante, que já na altura os britânicos pouco queriam saber do continente e estavam minados por grupos dispensáveis.
Terreno fértil para boa música de guitarras; de punk, pois bem. Toda a garra que uns Idles, uns Shame, uns black midi, ou uns Heavy Lungs (ou os Fontaines D.C. na Irlanda) debitam provém não só de hoje mas também dos tempos conturbados de 1976/77 e em diante, com epicentro cronológico em 1977. Veremos se conseguirão atravessar um Rubicão artístico e fazer o seu London Calling. Por ora, tem sido fenomenal assistir à sua evoluç-, ebulição por salas e festivais fora.
Se muitas vezes o amor que está ou esteve presente em quase tudo na nossa vida é o mais importante que se tem ou teve, London Calling, sem sequer ser o disco preferido dos Clash deste humilde escriba, é o álbum mais importante da sua vida. Sem este quarteto londrino e sem este disco, quase que não há escola nem estrutura em termos de música popular.
Não há Hugh Thomas nem interesse pela América profunda, do Sul e do Rust Belt, não há paixão por fotografia de concertos, não há apreço por sopros fora da clássica ou do jazz, não há Motown, não há ska/reggae/dub de Willi Williams ou Mikey Dread, não há country (ah, Waylon, Merle e Cash), quase não há folk (Woody Guthrie deu o primeiro pseudónimo de Strummer), não há curiosidade pela técnica de estúdio e pela importância da iconoclastia e do adogmatismo musicais – a lição do punk, portanto.
Poder-se-ia ficar aqui a elencar todas as lacunas que um simples disco de rock ajudou a preencher, de facto. Mas já devem estar fartos de tanto fanatismo.
A partir deste Cabo da Boa Esperança sonoro, nada mais foi como dantes. Se Sandinista! ajudou a definir as coisas em matéria de exploração de tudo o que seja feito neste planeta e que produza uma melodia ou um ritmo, o ponto de partida foi com o seu antecessor. De adolescente a adulto, a curiosidade intelectual (musical) de um mero melómano foi moldada por este álbum. Que redundou em coisas como ser svengali dos Clockwork Boys e membro de Gin Party Soundsystem.
E não foi só connosco. O ADN de London Calling está em quase toda a boa música com guitarras produzida desde então – vejam-se os The Hold Steady, por exemplo. Quando se é um elo de ligação entre os clássicos das guitarras eléctricas como os outrora odiados Elvis, Beatles e Stones e as gerações mais novas é-se cânone e pronto.
London Calling ainda só tem quarenta anos. Chegará aos mil, se tudo correr bem e porque o futuro não está escrito, já dizia Deus Nosso Senhor Joe Strummer.
Ide ouvi-lo.