Quarenta anos de Sandinista!

por José V. Raposo em 12 Dezembro, 2020 © Pennie Smith

Em Dezembro de 2019 comemorámos os quarenta anos de London Calling e no mesmo mês do corrente ano celebramos a ternura dos quarenta de Sandinista!, o sucessor do disco mais rememorado da carreira dos Clash, a única banda que realmente interessa. O rumo que a música popular ocidental (e não só) tem tomado nos últimos anos é o de enveredar não pelo estabelecimento de movimentos que se esgotam ao fim de poucos anos – maxime, o punk – mas antes pela exploração das potencialidades da junção de géneros e de subgéneros. O catálogo de algumas editoras é disso exemplo, ouça-se os da Sacred Bones, da Drag City ou da nossa Lovers & Lollypops. Em tudo isto se ouve, ainda que longinquamente, um pouco da energia e da alma de Sandinista!.

Se os Clash não foram exactamente pioneiros nesta exploração, foram certamente os primeiros a levar a cabo certas conjunções. Alie-se o adogmatismo e a intemporalidade do punk à séria e vejamos porque é que Sandinista! era, de certa maneira, um álbum de 2020 editado em 1980.

Ora, se sobre o seu antecessor dissemos que era o disco mais importante da nossa vida, então Sandinista! fica com o título de nosso disco preferido da banda; tal como o primeiro, o segundo teve o condão de nos abrir a pestana e os tímpanos para muita sonoridade nunca antes desbravada – quando não desprezada. A grande e fundamental tríade de sons da Jamaica – reggae, dub e ska – e o arranque do interesse pela música dita experimental marcham à cabeça da coluna, com um pouco de folk e de soul pelo meio.

Daqui se parte para o disco mais prolífico dos Clash, que não tiraram férias a seguir à consagração de London Calling nem por nada. Joe Strummer fechado no seu spliff bunker (um conjunto de caixas de transporte de instrumentos e um saco de erva) a fabricar letras enquanto Mick Jones devorava tudo o que viesse do novíssimo underground nova-iorquino e o resto da banda e uma tropa nada fandanga de convidados colaborava num esforço hercúleo que seria, ao mesmo tempo, mais um disco a preço reduzido em prol dos fãs (a caminho do buraco financeiro e da renúncia de royalties) e um corrupio de influências (ou de indulgências, dependendo do ponto de vista), mas derradeiramente um disco crucial para se perceber para onde foi o punk que realmente interessava.

São quase 145 minutos de música, uma eternidade fora do jazz ou do ainda inimigo prog rock. Se muitas canções são acessíveis, outras nem por isso, sobretudo para quem não conhece nada do que constitui os Clash. É a colaboração de nomes como Norman Watt-Roy e a fenomenal linha de baixo meio levantada dos Queen para The Magnificent Seven, é Ivan Julian dos Voidoids a acrescentar guitarra aqui e ali, é Tymon Dogg e o folk do seu violino, é o regresso dos clã Barnacle nos sopros e de Bill Price na engenharia de som, é o cão de Topper Headon a ladrar em Somebody Got Murdered, é o companheiro Mikey Dread no toasting e no cumprimento das versões dos dubs e Ellen Foley a acompanhar Jones na voz no soul de Hitsville U.K. (o título que desvenda o encontro Reino Unido-Estados Unidos da banda), entre outros. Tão inspirada andava a banda que Foley teve direito a ter os Clash como banda de estúdio no seu The Spirit of St. Louis.

Sendo que os Clash foram sempre uma banda politizada (e politicamente muito ingénua, admita-se) e tal reflectiu-se no seu cancioneiro, ouvir Sandinista! é como ouvir um noticiário de 1980: a guerra no Afeganistão, os efeitos ainda visíveis da guerra do Vietname nos Estados Unidos, o advento dos anos Reagan, da Marinha dos 600 navios de combate e da idiotice (e falhanço) das trickle-down economics, a anomia e raiva dos caixotes brutalistas de Londres e, no segmento cultural do noticiário, a música urbana norte-americana emergente e as tradições jamaicanas que a banda testemunhou em Notting Hill. Por cá, a ressaca de Camarate, o desespero pela estabilização da democracia e as ingenuidades e utopias a cada suspiro pela então C.E.E. e o intervalo entre duas intervenções do F.M.I. assombravam a psique dos portugueses, ainda que estivessem acompanhados por uma música popular em franco desenvolvimento, muito tributária dos próprios Clash, de resto.

Se no disco de estreia e em Give ‘Em Enough Rope a toada foi de guerra e de agressão (com o sexo de Protex Blue pelo meio), a partir de London Calling a temática mudou para um redemoinho dessa mesma agressão, de humor e o aprimorar de certa mitologia. Se as personagens de London Calling eram o Stagger Lee, os rude boys, os espoliados do fundo do barril social de Brixton, os combatentes na guerra civil espanhola de Spanish Bombs, o jogador de cartas mítico de The Card Cheat ou os publicitários cocainados de Koka Kola, em Sandinista! acrescentou-se uma dose de humor à coisa.

Temos o Ivan soviético a desafiar na pista de dança o GI Joe norte-americano em Ivan Meets G.I. Joe, Marx, Engels, Luther King e Gandhi em The Magnificent Seven, o vietcong meio parido pelo mato, meio parido pelo imaginário de Apocalypse Now (a longa-metragem de Coppola continuaria a inspirar a banda no álbum seguinte, Combat Rock) de Charlie Don’t Surf ou o retrato geopolítico do continente americano de Washington Bullets e suas personagens de antanho, como os sandinistas e Somoza da Nicarágua, os esquadrões da morte e uma pitoresca analogia com os então Washington Bullets de Wes Unseld e companhia, campeões recentes da NBA. Em seis lados de vinil cabe toda uma Arca de Noé de gente e de histórias, cantadas no logos das letras de Joe Strummer e na exploração de Mick Jones.

Pouco tinha mudado na violência urbana e racial no Reino Unido desde o ano anterior, isto é, desde a composição de Guns of Brixton. E havia quem – com algum acerto, diga-se – criticasse os Clash pela sua ausência da pátria em aventuras norte-americanas numa altura em que eram precisos pelas Ilhas Britânicas, onde a sua mensagem continuava actual, no meio do desmantelamento e das desigualdades de Thatcher.

Numa altura em que Brixton ardia em resposta à violência policial desmesurada e torpe por parte do Special Patrol Group, os Clash andavam em descoberta pelas ruas de Nova Iorque, descobrindo esse Adamastor cultural crescente chamado hip hop e incorporando-o nas suas canções com um fulgor até aí inédito – bem superior ao que os Blondie fizeram com Rapture, ao nível do que Grace Jones nos vinha habituando com o seu turbilhão funk, reggae e disco e como os LCD Soundsystem ainda hoje fazem. E a darem oportunidade de tocar em palco grande a bandas desse vital e influente monstro que aí viria chamado hardcore. A novidade era mais importante do que a necessidade pátria.

Antinómico em relação ao antecessor, Sandinista! é inimigo da coesão e, a espaços, amigo da confusão. Não se trata de um mero despejar de géneros, subgéneros e experiências para o ouvinte, mas não há uma arrumação que permita deslindar um conceito ou a ideia da banda para cada um dos três discos de vinil ou dois CD, ou um desfiar como em London Calling; foi, como em tempos disse Strummer, ir a uma loja de instrumentos musicais, pedir a maior balalaica que lá tivessem e correr para o estúdio gravar qualquer coisa. O produto final não tem outtakes, gravações perdidas ou afins, tudo o que foi feito está ali.

O seu épico historial de estúdio revela o caos: entre os estúdios Pluto em Manchester e o regresso onde se foi feliz nos estúdios Wessex em Londres, o disco foi sendo criado num deus-dará que envolveu fugas de carro do lendário Channel One em Kingston (quem lhes dera uma Safe European Home) e dias e noites a fio no Electric Lady em Nova Iorque, o estúdio concebido por Jimi Hendrix. Pelo meio, uma aparição de segundo e meio em The King of Comedy, de Martin Scorsese; o álbum respira e vive Nova Iorque, então dilacerada pela corrupção, pela especulação, pelo crime e por problemas financeiros – um cenário em tudo semelhante ao actual, de pandemia e de declínio graças a um imbecil chamado Bill De Blasio e sua corja.

Ao vivo, o álbum revelou um período glorioso, o último da História do grupo, de resto. Depois da fúria das digressões de 1978/79 e do revivalismo rock’n’roll messiânico das digressões de London Calling de 1979/80, eis o espectáculo-noticiário com direito a graffiti de Futura 2000 e a uma plêiade de primeiras partes de luxo (mas incompreendidas pelo público que mais as deveria compreender, o do punk, agora preso a 1977) na residência do Bond’s International Casino em Nova Iorque, em Junho de 1981: Grandmaster Flash, Dead Kennedys, Bad Brains, ESG, Lee “Scratch” Perry, entre outros. Por entre a pancadaria dos fãs contra a polícia, os vetos dos bombeiros à sala lotada e a missão de tocar para toda a gente que tivesse bilhete, a coisa deu mesmo um filme abortado de Don Letts. E deixou escola.

A única passagem dos Clash por cá foi precisamente para promover Sandinista!, no dia 30 de Abril de 1981 (que deveria ser feriado nacional, obviamente), no saudoso Dramático de Cascais, com os nossos Táxi e Pearl Harbor & The Explosions a abrir. Casa cheia, alinhamento e versões típicas da época e uma crítica a oscilar entre o informado e o ignorante (não chegando à imbecilidade das críticas aos concertos dos Ramones em Portugal de 1980, contudo). Um bilhete vermelho que custava 400$00 (€2,00) e mais um daqueles concertos do qual ainda hoje saem histórias.

Sandinista! é um álbum monumental – ou, se se preferir, vários álbuns num só – de uma banda colossal. Em termos de formato foi o último grito de uma banda prolífica e criativa mas simultaneamente ingénua e de certo modo indulgente e que se começava a desintegrar, por via da tensão cada vez mais reactiva e cada vez menos criativa de Strummer e Jones (a dada altura, uma nota fora do sítio era um confronto capitalismo-comunismo) e do vício da heroína de Topper Headon. Será um álbum conceptual ou um conceito em forma de álbum?

Pegamos em Lightning Strikes (Not Once but Twice) e no magnífico pastiche que é The Magnificent Seven e ouvimos o futuro, o mote de que não havia barreiras senão para os preconceituosos e os puristas, perdão, ignorantes que se arrogavam de ser guardiões da pureza artística do punk; já Metal Box dos PiL tinha dado pistas nesse sentido, num grande pirete aos ditos puristas de bandas medíocres como os Chelsea. Quando a remistura Magnificent Dance coloca os pioneiros do hip hop a dançar e a indagar-se sobre quem são esses punks que fizeram um malhão (e Larry Levan a usá-la para afinar o sistema de som do Paradise Garage), está-se perante gente de excepção.

Na altura, uma colagem como Mensforth Hill foi para lá de incompreendida, hoje em dia é perfeitamente enquadrável no aventureirismo que pauta a música popular – longe de ser indulgência, é uma fritaria experimental das boas. Não esqueçamos, ainda, a beleza de Broadway ou de The Equaliser. Como na grandeza também há horror, o álbum também consegue ser aberrante: para além da coda de Broadway com uma criancice de The Guns of Brixton por parte de Maria Gallagher, filha do amigalhaço, teclista e colaborador Micky Gallagher, a pior canção do disco é mesmo a versão infantil de Career Opportunities cantada pelos outros filhos de Gallagher – preferimos os Ministars, lamentamos.

Qual é, mesmo, a actualidade de Sandinista! em 2020? Deixando a pandemia de lado, os festivais de música (popular e não só) de proa da actualidade são reuniões magnas de diversidade sonora – vide que num Primavera Sound ou, ainda mais, num Le Guess Who? ou Out.Fest desta vida se pode saltar de música carnática para reggaeton ou para os clássicos indie. Não restem dúvidas de que este álbum para tal contribuiu, levando o adogmatismo do punk para onde poucos tinham levado até então (excepção para os Talking Heads, nunca exactamente punk, ou para os geniais The Ruts), para bem longe dos três ou quatro acordes de sempre e do marasmo de mediocridade onde boa parte do punk britânico se encontrava, salvo o novíssimo oi!. E hoje? Há ilustres continuadores, como os The Hold Steady, os Titus Andronicus ou os Iceage.

Corte-se este Ovo de Colombo com uma navalha de Occam e conclua-se que o conceito possível é o de ser um disco próprio para isolamento, indicado para descobrir sons novos e ter uma data deles à mão de semear – assim uma espécie de serviço público de música popular. Se em 1980/81 era, como disse Jones, para quem estivesse isolado numa plataforma de petróleo, em 2020/21 é para quem estiver confinado e à espera da normalidade.

Passe o lugar-comum, é um disco grande e um grande disco. Como remata Saint Joe Strummer no final de The Magnificent Seven: “fuckin’ long, innit?”.


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José V. Raposo

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