Dez Takes 15: Publicidade e Realizadores de Cinema

por Bruno Ricardo em 21 Junho, 2017

O formato do anúncio comercial costuma ser o parente pobre do meio audiovisual, abaixo até, em apreço, dos vídeos musicais e instalações artísticas num preto e branco granulado e animais grunhindo que habitualmente se encontram em vídeo em Serralves.

Ainda assim, não é incomum encontrarmos alguns dos nomes mais conhecidos da realização cinematográfica a emprestarem (ou venderem descaradamente) o seu talento a grandes companhias e corporações, como se fossem mercenários da imagem. Na verdade, é quase certo que muitos dos leitores já terão assistido a conhecidos reclames publicitários sem desconfiarem sequer que por detrás da sua concepção estava um famoso realizador. São vários os motivos que atraem estes profissionais a um pequeno desvio pela mais curta forma de contar uma história em imagens. O dinheiro é normalmente um incentivo fantástico, mas alguns casos, a possibilidade de experimentar com nova tecnologia e até uma maneira de não perder a boa forma profissional entram também na equação.

O Dez Takes deste mês traz-vos então uma dezena de anúncios realizados por gente que conheceis de outras andanças mais sérias e aclamadas. Uma grande parte, senão todos, já ganharam ou estiveram nomeados para grandes prémios e será sempre curioso descobrir aquele comercial pelo qual vocês não davam um tostão é afinal da autoria do vosso realizador preferido.

Antes de mais, uma menção honrosa para o mais óbvio nesta categoria: sim, sabemos que Ridley Scott fez um pequenino spot para a Apple,que será porventura o mais famoso da história do género. Com esta informação fora do caminho, vamos a isto.

#1 David Fincher, Nike

Esta lista podia ser exclusiva do norte-americano, que começou a sua carreira com um anúncio para a American Cancer Society onde mostrava um feto fumando com a mesma fúria com que Marla Singer come cigarros em Fight Club. O realizador, apesar de hoje ser dos mais aclamados do cinema norte-americano, continua a experimentar com o formato, na sua filosofia de não se contentar pelo normal. “Beer run”, feito para a Heineken, apresenta Brad Pitt perseguido por paparazzi enquanto busca comprar cerveja, numa mistura de humor absurdo e crítica social que lhe é característica. No entanto, é este “Fate”, onde duas vedetas de futebol americano chocam no momento para o qual toda a vida os conduziu. Serve o conceito da marca, tem o seu quê de poesia e o rigor visual e quase ausência de steadycam é nada mais Fincher.

#2 Sergio Leone, Renault

O último filme do nome maior do western spaghetti é, tecnicamente, este conceito filmado para publicitar o Renault 18. Tem elementos que se esperam em Leone: música de Ennio Morricone, laconismo a todo o redor, e areia. O italiano procurava acumular dinheiro para se lançar na realização de um novo filme chamado “Troppo Forte” e a Renault pagou-lhe de bom grado. O carro é filmado como um animal impossível de ser contido e o tradicionalmente extenso Leone tem de concentrar os seus tiques e tensão em coisa de meio minuto. Consegue-o.

#3 Spike Jonze, Adidas

Tal como David Fincher, Spike Jonze surgiu do meio comercial, seja em publicidade ou videoclip, para se tornar num nome respeitado do Cinema actual. No entanto, ainda antes dessa passagem, era talvez um dos mais premiados realizadores publicitários do mundo, com conceitos tão seus e tão fora da norma que o tornaram na pessoa ideal para transformar os mundos complexos de Charlie Kaufman em algo de compreensível num ecrã. Ainda hoje os seus anúncios causam frenesim, como aconteceu no ano passado, quando o seu trabalho para a Kenzo chegou rapidamente aos milhares de visualizações no Youtube. Escolher um dos seus anúncios é quase sempre acertar com algo de premiado (aconselho “Pardon our dust”, para a GAP ou “Lamp”, para a IKEA). No entanto, lembro-me perfeitamente deste “Hello tomorrow”, anúncio para a Adidas, de vê-lo quando jovem e ficar completamente hipnotizado. O conceito é surreal, mas a poesia das imagens casadas com a voz desencarnada e na corda dos sonhos de Karen O, elevam uma promoção a sapatilhas para algo que mexe com qualquer coisa de primário dentro de nós.

#4 David Lynch, Sony

 

Apesar da cadeirinha reservada no bastião dos grandes autores do Cinema moderno, Lynch tem uma larga carreira publicitária. Será, talvez, o único realizador desta lista que terá trabalhado para si mesmo, quando realizou as sequências publicitárias relativas à sua marca de café! Os anúncios que realiza são indiscutivelmente seus, no sentido em que qualquer pessoa minimamente familiarizada com a Sétima Arte vê neles os traços lynchianos que o tornam num dos mais fascinantes, ou aborrecidos, realizadores actuais. Nenhum outro spot é mais conhecido, ou exemplificativo de Lynch, do que aquele que marcou o lançamento da Playstation 2. A Sony arriscou e o norte-americano entrega o que melhor sabe: corredores longos e escuros; pessoas com cabeça de pato; geografia ilógica lembrando MC Escher; um protagonista perdido em labirintos; sorrisos de agouro; um constante assalto aos nossos sentidos com o objectivo de nos arrancar da realidade. “Welcome to the third place” indeed.

#5 Luc Besson, Chanel

A Chanel, casa de perfumes francesa (alguns deles de partir o… Coco – silêncio na sala) tem trabalhado com gente bem famosa e por detrás da câmara, alguns visualistas têm emprestado o seu estilo pessoal à promoção do bom cheiro em corpos agradáveis à vista: Baz Luhrmann levou o seu amor pelo melodramático a um extremo quase insuportável colocando Nicole Kidman e Rodrigo Santoro numa rota de colisão quase tão novelesca quanto Moulin Rouge; Joe Wright ofereceu a Keira Knightley uma tour por Paris tão francesa que só lhe falta a boina; Jean Perre-Jeunet levou a sua Amélie, Audrey Tautou, numa viagem até à Turquia para um romance olfactivo. No entanto, é outro nome maior do cinema francês contemporâneo quem traçou o anúncio clássico de perfumes, sejam Chanel ou quaisquer outros: um Capuchinho Vermelho entra na gaiola dourada do cheiroso néctar e acalma o Lobo Mau com assertividade. Chama-se “Le loup” e influenciou qualquer propaganda a perfumes desde então. A escolha da cor, a maneira como mexe com o nosso imaginário inconsciente, Paris natalícia e eterna e também aquele “Chanel Nº 5” dito maviosamente no final marcou este anúncio na memória de quem cresceu na década de 90.

#6 Alejandro Gonzalez Iñarritu, Procter & Gamble

Em 2012, durante os intervalos da transmissão televisiva dos Jogos Olímpicos, um spot publicitário em particular chegou a emocionar-me, e penso que a grande parte de quem assistiu.

Mostrava quatro histórias separadas, protagonizadas por gente de raças diferentes, atletas que cresceram apoiados pelas suas mães para chegar ao sucesso. A mensagem era simples: o melhor emprego do mundo é ser mamã; e diabos se não resulta. O mexicano fez trabalho para outras empresas (nomeadamente a Nike, com “Write the future”, onde Gael Garcia Bernal aparecia em cameo a fazer o papel do nosso Cristiano), mas é aqui que, de forma concisa, sem grande estardalhaço e com a ajuda inestimável do tema “Divenire”, de Ludovico Einaudi, Inãrritu apanha a essência do sacrifício das figuras que não aparecem no pódio na altura das medalhas. A Procter & Gamble viria a repetir a fórmula em Socchi, 2014, e Rio, 2016, mas sem Iñarritu.

#7 Martin Scorsese, Frexenet

É conhecido o amor que Scorsese tem pela preservação da memória cinematográfica, principalmente das bobines de celulóide que o tempo corrompe levando à perda de tesouros cinematográficos importantíssimos. A marca de espumantes Frexenet associou-se ao nova-iorquino para criar um falso documentário, que funciona como promoção da marca, onde Scorsese (e a sua habitual editora Thelma Schoonmaker) se vêem com a responsabilidade de filmar um guião perdido de Hitchcock: “Key to Reserva”. Segue-se um brilhante pastiche onde um mestre de Cinema imita outro à la lettre e com todo o requinte, numa intriga hitchcockiana onde o champanhe, está claro, tem um papel importante. Para alguém que, como o americano, sempre reverenciou o Cinema com que cresceu, emulando-o na sua obra, deve ter sido um engraçadíssimo exercício lúdico. Quase tão engraçado quanto o final deste seu anúncio, delirante para qualquer cinéfilo que se preze.

#8 Ingmar Bergman, Bris

Leram bem. Bergman. Porquê? Deixo que o próprio mestre explique: “Sinto dificuldade em sentir desprezo quando a indústria vem ter com a Cultura de cheque na mão”. Em 1951, questões de impostos levaram a que os estúdios suecos fizessem grave ao Cinema. Ninguém filmava. Bergman, na altura com 33 anos e já tendo três famílias para alimentar, concordou em filmar nove anúncios para a Bris, uma empresa de sabonetes sueca. Visto que o realizador conseguiu o controlo criativo dos mesmos, é possível encontrar neles os traços que mais tarde marcariam os seus filmes mais famosos, como a introspecção de Persona. Nalguns, Bergman mostra o que está por detrás da feitura de um filme, brincando com os mesmos efeitos especiais que mais tarde desprezaria em entrevistas. Para além de serem, em si memso, obras de arte, este conjunto de pequenos spots são uma curiosa anomalia de um cineasta tido por muitos como o derradeiro e puro autor. Que, como várias vezes repetiu a propósito deste episódio, não teve qualquer problema em servir o capitalismo perante um pequeno enrascanço financeiro na vida.

#9 Jonathan Glazer, Guinness

Talvez o nome menos conhecido da lista, Glazer saltou, como Fincher e Jonze, da imagem comercial para o cinema com relativa facilidade. No entanto, ao contrário destes dois, tem demorado a impôr-se, um pouco por querer seguir uma carreira de cinema mais independente, até bizarro e pouco convencional, representado por obras excelentes como Birth ou Under the skin. O seu anúncio mais conhecido será porventura “Paint”, para a Sony; no entanto, um conjunto de incríveis spots a preto e branco que realizou para a Guinness na década de 90, numa campanha chamada “good things come to those who wait”, são o seu melhor trabalho no género. “Dreamer”, onde um bêbedo se perde nos seus próprios delírios alcoólicos dentro da cabeça é percursor da sua carreira como cineasta, mas “Surfer”, que retrata o mar como uma manada de cavalos prestes a abater-se sobre um conjunto de temerosos surfistas, é insistente na sua batida, poderoso na sua mensagem, marcante na sua estética; e mistura arte e comércio de uma forma que Bergman não desdenharia.

#10 Vários, BMW

É batota, mas que se lixe. Em 2002, a BMW contactou a Propaganda Films, empresa fundada por, entre outros, David Fincher (e o círculo completa-se), para produzir uma série de curtas-metragens em redor de veículos da marca e protagonizados por um personagem conhecido como O Condutor. Clive Owen foi convocado para vivê-lo – numa espécie de ensaio para James Bond – e foi escolhido um conjunto ecléctico de realizadores: John Frankenheimer, Ang Lee, Guy Ritchie, Wong-Kar-Wai e Alejandro G. Iñarritu. Apesar de tudo, cada um é a imagem do seu autor e a BMW terá dado carta branca à produção, apenas exigindo que os seus carros tivessem papel de destaque. O sucesso foi brutal: nos quatro meses seguintes à estreia da primeira curta-metragem, as vendas da BMW subiram 12% e quatro milhões de pessoas haviam visto os filmes. Rapidamente uma segunda temporada foi encomendada e desta vez, três nomes foram adicionadas a esta prestigiada lista: John Woo, Tony Scott e Joe Carnahan, desta vez gente de cinema mais musculado. Fincher foi também substituído como produtor, entrando em acção Ridley Scott. Em quatro anos, o pioneiro projecto, que inspirou outras marcas a fazer o mesmo, foi visto por 100 milhões de pessoas. Talvez por isso, quinze anos depois da produção da última destas curtas, a BMW tenha lançado uma nova temporada, até agora só com uma obra realizada por Neil Blomkamp.


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Bruno Ricardo

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