Dez Takes – Take 2: A música dos filmes (primeira parte)

por Bruno Ricardo em 16 Fevereiro, 2016

«Não existe maior arma no arsenal de um realizador do que uma canção estrategicamente bem colocada». Esta foi uma das piadas de Will Ferrell numa cerimónia dos Óscares há uns anos. No entanto, o nosso imaginário cinéfilo é uma manta de retalhos polifónica, onde canções e imagens se misturam com facilidade. Alguns dos grandes momentos de Cinema que nos protagonizam nascem desses cruzamento que existe quando os nossos ouvidos e os nossos olham se encontram num bar e tudo parece fluir em direcção ao orgasmo: a cena perfeita com a canção perfeita.

O Dez Takes deste mês é dedicado ao nosso amor pelas canções. Inspiradoras, orelhudas, complexas, mas acima de tudo padres no casamento entre imagem e música. Regras: musicais não valem. Isso era demasiado fácil. Em sgeundo, a canção não proporcionar nem playbacks, nem danças, nem interpretações. Isso teremos no próximo mês. Em terceiro, haverá uma tentativa de espalhar isto o mais temporalmente possível. Por fim, no final, sugiram, discutam, vociferem; mas sem ameaças de morte, que Fevereiro é o mês mais curto e estamos em ano bissexto.

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#1 “Born To Be Wild” (Easy Rider, 1969)

Para abrir, uma abertura e daquelas que não só tornam um filme mítico, como lançam uma canção como identificação de todo um grupo. Pode alguém escutar este tema dos Steppenwolf sem imaginar motoqueiros a abrir estrada fora? Impossível. A culpa é da obra seminal de Dennis Hopper, que pegou num tema sobre liberdade e o fundiu com a procura dos grandes espaços e também da identidade da América. Desde então, foi referida em dezenas de filmes e séries, ligada invariavelmente a motards ou viagens estrada fora. Esse é o poder do cinema. Ajuda que, enquanto vemos a cena, de facto Peter Fonda e Dennis Hopper, nas suas Harleys, pareçam incrivelmente cool.

#2 “Perfect Day” (Trainspotting, 1996)

Aquele que, para mim, ainda é o mais potente filme do escocês daria várias entradas para esta lista. Desde a maníaca abertura com “Lust for life” de Iggy Pop, lançando o quarteto de personagens principais e o seu mundo em cheia na nossa cara, até ao final de libertação acorrentada com “Born Slippy” dos Underworld, a transformar-se numa das canções da década de 90, a banda sonora deste filme tem muito por onde escolher. No entanto, sou eu a selecionar e para mim, raras vezes uma cena e uma canção se uniram de forma tão perfeita como na overdose de Mark Renton ao som de “Perfect Day” de Lou Reed.
Sempre se discutiu se o tema não seria sobre o vício de heroína do cantor norte-americano e Trainspotting encerra o debate: a cena navega os mares da morte com a mesma calma com que Reed canta, o corpo bate em todas as superfícies, mas que interessa isso quando se tem heroína? Uma overdose é apenas mais um dia tanto para o viciado, como para o dealer que o envia para o hospital numa ambulância em forma de táxi. Um dia perfeito.

#3 “In Your Eyes” (Say Anything, 1989)

Poucas coisas são melhor servidas por uma canção do que uma cena de declaração de amor. O rapaz ou a rapariga decidem abrir o coração à pessoa amada com palavras alheias e o mundo torna-se perfeito. No filme de estreia de Cameron Crowe (que tem um dedo do caraças para escolher canções, já que escreveu durante anos para a Rolling Stone: vide, por exemplo, “Everything In Its Right Place” dos Radiohead a abrir Vanilla Sky ou o top do próximo mês), John Cusack é literal nisto: o rapaz segura uma boombox a tocar “In Your Eyes” de Peter Gabriel a uma Ione Skye linda de morrer e presa num castelo suburbano controlado pelo pai. Cusack leva como o ex-vocalista dos Genesis como escudeiro. É o retrato perfeito do arrebatamento amoroso de um adolescente para quem só uma coisa interessa na vida: a miúda que ama. E é capaz de ficar ali de braços erguidos dias inteiros se for preciso.

#4 “Needle In The Hay” (The Royal Tenenbaums, 2001)

“These Days” de Nico também poderia figurar, mas o assombrado uso da faixa de Elliot Smith é de tremer. Na cena em questão, um dos personagens, derrubado por saber que a mulher que ama se vai casar com o melhor amigo, tenta o suicídio e sabendo hoje que Smith se suicidou na vida real é apenas um pormenor que não retira à cena o seu sombrio poder. As curvas e covas da cara de Luke Wilson, enquanto se barbeia, são adensadas pela voz de meio falsetto de Smith, dissertando sobre a decadência da heroína.

Wes Anderson filma isto como poucas vezes o fez na carreira, permitindo que no seu formalismo estético entre uma paleta de escuridão. I’m gonna kill myself tomorrow e o sangue jorra dos pulsos. A música de Smith foi dada a conhecer aos cinéfilos em “Good Will Hunting”, com um uso em particular da tocante “Between The Bars” a ser de destaque. Mas por uma vez num filme, Wes Anderson encontrou o seu lado negro através do cantor de Nebraska, desaparecido demasiado cedo para que alguma vez possamos sentir-nos em paz com essa ideia.

#5 “Hip To Be Square” (American Psycho, 2000)

You like Huey Lewis and The News? Então Christian Bale, vestindo um fato de semi-humano como Patrick Bateman inicia uma dissertação sobre uma das mais famosas bandas americanas da década de 80. Debita aforismos de críticas de revistas e jornais a um Paul Allen (Jared Leto, ora pois) lixadinho da cabeça por ter uma relação demasiado amiga com a cocaína. Veste um impermeável porque o ponto alto desta canção não é um refrão: é o momento em que desmancha o outro indivíduo ao meio. No fim, senta-se, fuma um charuto e curte o som. Tudo isto enquanto o tema de Huey Lewis bomba no stereo do apartamento ideal e imaculado, nesta sátira negríssima ao excesso yuppie da década de 80. Gente falsa e vazia, um homem que simplesmente vive para matar, mas não é que isso traga qualquer coisa à sua vida que não seja a artificialidade do que diz e faz. Tudo isto ao som de um pop fabricado e orelhudo, que casa tão bem com a cena como o esfoliante casa com o corpo bem definido de Bale.

#6 “Layla” (Goodfellas, 1990)

Poucos realizadores têm o condão de escolher o tema certo para o momento certo como Martin Scorsese. Foi dos primeiros a perceber o poder da música pop quando aplicada ao cinema, praticamente desde a sua primeira longa-metragem Mean Streets. Em Goodfellas, uma das suas obras maiores, nem precisa de letra: só som. Está dada a deixa para a macabra montagem de um rasto de corpos deixados após um assalto bem-sucedido, por um psicopata criminoso. Não há qualquer tipo de edição ou corte para adequar a canção ao filme: tudo é composto por vários planos cuidadosamente planeados que se destinam a cruzar horror, tristeza e alegria ao ponto de nos confundir: devemos ser contra ou a favor destes mafiosos que acompanhámos o filme todo? Para ajudar, Scorsese tinha a canção a tocar no set enquanto filmava, para que a edição não falhasse. O resultado? Uma montagem perfeita.

#7 “Hotel California” (Big Lebowski, 1998)

Que música poderia acompanhar a marcha épica de um pederasta latino? Segundo os irmãos Coen, uma versão do clássico dos Eagles “Hotel California”, mas com os tons gitanos dos Gipsy Kings. Resulta: não só lança um salero imenso sobre o lendário secundário interpretado por John Turturro, como torna os seus strikes e talento para o bowling ainda mais poderosos. A envolvência do tema é imediata: a nossa surpresa, perante a versão de um dos clássicos do rock norte-americano, é semelhante à de Dude Lebowski, Donnie e Walter enquanto observam este curioso e estranho homem vestido de violeta, que ameaça com pistolas imaginárias e aponta, claro está a vias anais. A vida como telenovela mexicana sob o efeito de drogas, por Jesus Quintana: the one nobody fucks with.

#8 “Wake Up” (The secret life of Walter Mitty, 2013)

O interessante (mas em última instância, desequilibrado) filme de Ben Stiller tem vários problemas, mas a banda sonora não é definitivamente uma delas. Stiller quase monta um filme em pequenas vinhetas com acompanhamento musical, em escolhas muito indie rock pós-moderno: José Gonzalez, Of Monsters and Men, Junip ou Rogue Wave figuram, e a certa altura, numa cena que contaria se não fosse a segunda regra, Kirsten Wiig canta David Bowie.

No entanto, numa história sobre um homem fechado em si que anseia ter a coragem de se libertar, a escolha é o momento em que isso acontece: numa montagem de momentos rápidos que levam Walter Mitty do arquivo da Time em Nova Iorque até à Islândia, as vozes dos membros dos Arcade Fire gritam “Wake Up” como um canto de libertação, um apelo a fazer da vida algo mais do que o banal. Um convite a acordar e a cheirar o ar gelado da Islândia ou até ver para lá dos limites do nosso corpo.

#9 “California Dreamin” (Chungking Express, 1994)

A ligação entre Wong Kar Wai e a música é tal que o seu primeiro filme norte-americano é protagonizado por Norah Jones. Um olhar pelos seus filmes de Hong-Kong revelam um amante da música norte-americana das décadas de 50 e 60, e só um homem assim conseguiria fundir as ruas sujas e atulhadas de Hong Kong com a pop soalheira e de veraneio dos The Mammas and the Pappas. A canção é usada várias vezes ao longo do filme, quase sendo uma personagem secundária!
Num filme com três histórias, esta canção serve de banda sonora do romance entre os personagens de Tony Leung e Faye Wong. Sente-se que o tema é o casulo desta, e tem-no sempre em tão alto som que na cena em que se conhecem, ele faz um pedido na sua roulotte e tem de fazê-lo ao ouvido. No filme, a Califórnia é um lugar quente e de refúgio. É a promessa de uma vida feliz para a personagem de Wong; e é um escape de uma existência banal e suja na grande cidade.

#10 “Where Is My Mind” (Fight Club, 1999)

Pode-se encerrar um filme com uma canção que tudo resuma, e na verdade, a indecisão esteve entre outros dois filmes: Dr. Strangelove, com a tragicomédia satírica de “We’ll Meet Again” na ponta do fim do mundo, ou Apocalypse Now, que com “The End” dos Doors adensa ainda mais a abertura destrutiva de napalm num Vietname redemoinho. No entanto, a escolha óbvia é mesmo o já clássico filme de David Fincher.

Tudo é perfeito: desde a escolha do tema dos Pixies até à excepcional beleza de um plano de apocalipse urbano, um mundo que cai e tudo arrasta ao que só a ligação entre um homem e uma mulher parece resistir. É a imagem de romance ideal do final de milénio. Fight Club é sobre a procura da identidade e quando Frank Black canta with your feet on the airand your head to the ground, a confusão adensa-se, não se clarifica. É a história de amor de um rapaz e de uma rapariga que se conhecem numa altura estranha das suas vidas e que finca o mundo como uma âncora… até uma pila rasgar o ecrã num relâmpago. Um minuto que condensa toda a magia que existe quando a canção perfeita veste a cena ideal. Magia.


sobre o autor

Bruno Ricardo

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