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O Dez Takes deste mês é uma sequela directa do anterior. Se antes apresentei dez cenas de cinema em que uma canção amplifica todo o poder de uma cena mas sem ser notada pelos personagens, desta vez a sua presença não só é assumida, como também interpretada.
Haverá dança, cantoria e demais expressões de música e letra. Acima de tudo, haverá novamente Cinema e também bizarria. As regras deste mês são simples: não repito realizadores (daí uma das minhas escolhas originais, Tiny dancer, da obra de Cameron Crowe Almost Famous ter ficado de fora), musicais serão deixados de fora tentarei ser o mais variado possível em géneros e proveniências geográficas. Estas não são as melhores cenas e muitas ficaram certamente de fora, incluindo as vossas preferidas (e até algumas minhas). No entanto, como em todas as listas, são o ponto de partida para uma discussão que pode prosseguir na secção de comentários. Sem mais demoras, vamos a isto.
Era possível fazer uma lista inteira só com Tarantinadas. Custa-me deixar de fora, por exemplo a cena em que Michael Madesn, em Reservoir Dogs, saca da orelha de um mânfio ao som de Stuck in the middle with you, tal como abdiquei de uma série delas no mês passado. Mas o motivo é o melhor de todos, porque seria de uma enorme omissão não escolher, de entre todos os seus imensos bacanais de música e cinema a cena de dança que não só colocou muitos cinéfilos a fazer gestos ridículos, como lhes deu todo o sentido.
É uma cena de corte entre Vincent Vega e Mia Wallace, é um momento de pausa no filme, é Tarantino a convidar-nos a apaixonar-nos novamente pelas pernas cool de John Travolta, é um momento de puro gozo cinéfilo. Pulp Fiction continua a ser o melhor filme de Tarantino, porque é o apogeu nunca ultrapassado de uma habilidade sobrenatural em fazer de um filme uma sala de estar, um local onde nos instalamos e não estamos a ver: desfrutamos; e o tema de Chuck Berry embala as ancas alheiras nos nossos olhos como só o rock and roll consegue fazer.
John Hughes é um dos grandes cronistas da adolescência no cinema. As suas dores raramente foram tão simples e bem explicadas como nas palavras de Hughes. O realizador também era um mortífero criador de bandas sonoras. O final de The breakfast Club é literalmente um momento de vitória esmurrada no ar e em Pretty in Pink, Jon Cryer faz um playback fantástico de Elvis que fala volumes sobre amor reprimido. No entanto, quando em Ferris Buller’s Day Off o personagem que dá nome ao filme faz o playback do clássico dos Beatles, em Von Steuben Day, o dia de folga das aulas de três estudantes transforma-se numa fantasia bem real (quando negros surgem a ensaiar uns passos de dança directamente para a câmara e alheios a tudo, as fronteiras entre ficção e real desvanecem-se): quem nunca quis, com o poder de uma canção, fazer da multidão a sua bitch? Ferri’s Bueller é um personagem reprovável, se pensarmos no final, mas Matthew Broderick interpreta-o como o derradeiro wish fulfillment, um Tyler Durden para a pós-puberdade; e nada o mostra melhor do que esta cena: uma celebração de pura liberdade e alegria.
Tim Burton viria finalmente a realizar um musical em 2007, com Sweeney Todd, mas os seus mundos góticos e surreais sempre tiveram uma relação alegre com a música, quase sempre antiga: Mars Attacks USA country como instrumento de salvação e em Pee-Wee’s Big Adventure, o personagem principal escapa de boa graças ao encantos de uma tema sobre tequilha. Mas é em Beetlejuice que o seu sentido de humor musical paga dividendos em grande. A música de Harry Belafonte é usada várias vezes nesta historia de um grupo de fantasmas incompetentes que precisam de contratar um espírito mercenário para ajudá-los na missão de expulsar um casal de novos ricos de uma casa. Beetlejuice, sublime criação de Michael Keaton, tem um particular atracção pelo cantor de origem jamaicana, e num jantar bem posh, a mesa rapidamente está a abanar o pandeiro (literalmente, num momento) ao som contagioso de Day-oh. Burton diverte-se, como os fantasmas, a misturar coreografia (e um excelente trabalho de atcores, principalmente Catherine O’Hara, que pertence tanto ao universo Burtoniano como Johnny Depp e Helena Bonham-Carter) com pormenores de terror divertido. A maneira como a cena acaba é Burton, mas se nunca deixar de seguir ao ritmo das Caraíbas.
O momento em que, num oceano de dor e catarse, os personagens principais da obra-prima Magnolia cantam a balada de Tough Love de Aimee Mann é não só sublime como aquele momento em que o filme se transcende. O realizador Paul Thomas Anderson nunca escondeu que o seu guião foi inspirado nas canções da cantautora norte-americana, chegando a haver falas roubadas a versos seus. Save me foi nomeada para o Óscar de melhor canção, apenas porque Wise Up não foi originalmente escrita para Magnolia: apareceu três anos antes em Jerry Maguire. No entanto, ficou inevitavelmente ligada ao drama coral de Anderson, num momento de emoção transbordante e de epifania, onde gente perdida e a fugir da vida e de si mesmos tem finalmente o momento de choque com a realidade, de conforto da esperança. É um grupo de perdedores por quem Anderson estão tão perdidamente apaixonado que sabe perfeitamente que por muito que lhes escreva brilhante diálogo, poucas coisas nos são mais superiores e divinas do que a música. Poucos minutos depois, caem sapos. Coincidência?
Uma pessoa vai preparada para um filme de David Lynch. Quando o Frank Booth com olhos esbugalhados de Dennis Hopper domina o filme, com os seus fetiches bizarros e a sua violência psíquica a rasgar todo o cenário, pensamos que atingimos o zénite da estranheza. Mas não contamos com um momento/sonho em que Dean Stockwell, vestido com camisa de lantejoulas e saído de uma outra década em atitude, faz um playback de In Dreams perante um aturdido Kyle Machlachlan. Entre o público, a voz angelical de Roy Orbison, que é o contrário do que esperamos num filme de Lynch, toca fundo no psicopata Booth, um homem que mesmo na nostalgia não consegue deixar a raiva de fora. No entanto, esta memória musical de uma América clássica encaixa nos grandes temas do filme, sobre a normalidade, o encanto da repulsa e a fina camada que esconde o centro fetichista do mais banal dos seres humanos. Outra canção, Blue Velvet, dá nome ao filme; mas é In Dreams, com Stockwell e Hopper a viver Roy Orbison no ecrã, que lhe marca o compasso de uma das grandes obras de David Lynch.
E agora para algo completamente diferente: acordeão. O realizador francês Léos Carax deu ao mundo, em 2012, Holy Motors, onde convocou o seu actor de sempre, Denis Lavant, para uma obra que oferece mais interpretações do que Casillas oferta golos. No entanto, numa intermissão dentro do filme (e declarada no ecrã), o personagem de múltiplas designações interpretado sem qualquer medo por Lavant surge numa igreja de Paris tocando o acordeão, solitário. O tema é um clássico de blues, Let my baby ride. O filme, que pretende ser não só uma análise dos mecanismos do cinema mas também um rio onde a dor salpica a nostalgia, salta um degrau quando a Lavant se junta um grupo de acordeonistas que o acompanham neste momento musical de energia, que ergue o filme um bocadinho acima do negrume. A tristeza desvanece-se e Lavant é tão brutalmente carismático que é difícil acreditar porque está tão triste. O actor tornou-se conhecido pelo seu estilo muito físico de reprsentar. Noutros dois filmes, protagoniza cenas de dança de catarse imensa: em Mauvais Sang, de Carax também, dança pela rua ao som de Modern Love, de David Bowie (que mais tarde Noah Baumbach, ahm, homenageará em Frances Ha; em Beau Travail, é um homem gay que depois de reprimir durante todo um filme, explode em dança com The Rythm of the Night, de Corona. Mas em Holy Motors, Lavant transforma o acordeão num instrumento emocional de maneira diferente da de Astor Piazolla, Aqui, é simplesmente alívio.
Heath Ledger desapareceu demasiado cedo. As suas performances em Brokeback Mountain e The Dark Knight deram-lhe uma imortalidade rara para alguém com menos de 30 anos. No entanto, o momento em que o australiano mostrou essa luz e talento que mais tarde fariam de qualquer ecrã onde surgisse um espaço de surpresa permanente está na simples cena de Ten Things I Hate About You, em que canta a uma jovem donzela que pretende seduzir a clássica canção do vocalista dos Four Seasons. O filme adapta a peça de Shakespeare “A fera amansada”, onde numa intriga de apostas e jogos de corte, uma mulher inquebrável deve ser dobrada por um homem à altura. No filme, a mulher é a Katrina de Julia Stiles; o homem à altura o Patrick de Heath Ledger. No início da canção, ela não pode com ele; no final, ela quer poder tudo só para estar com ele. A música quebra barreiras, mas também constrói auras. Quando desliza por aquele poste, Heath Ledger estava a entrar num mundo no qual nos fascinou, infelizmente por pouco tempo. Como a canção; e naqueles dois minutos, vejam lá se conseguimos desviar os olhos dele.
Pode um mau filme ser redimido por uma grande cena? É a pergunta em Gamer, de Mark Neveldine e Brian Taylor, que imagina um futuro onde pessoas controlam outras pessoas em jogos de computador. A ideia é bem interessante, mas temos ao leme os realizadores de Crank, o que garante hiperactividade da câmara, mas uma certa preguiça em fazer de facto um filme decente. Mas eis que surge Michael C. Hall, que embora conhecido como o sociopata Dexter Morgan, também tem créditos no teatro musical. O momento em que surge numa cena final, quando o herói do filme (um grunho anódino interpretado por Gerald Butler), chega inevitavelmente para um showdown decisivo, a cantar a eterna orelhuda canção de Cole Porter, controlando mentalmente uma vintena de capangas, é um merecido bálsamo para o espectador. Não só Hall é brutalmente carismático, como enfia o filme num chinelo, numa daquelas performances fantásticas. Mistura dança e bordoada com pinta e alguma originalidade, e o ar gazeado de Hall enquanto o seu ring-a-ding-ding simplesmente faz esquecer todo o filme leva-me a pensar que o actor escolhido para interpretar o novo Joker podia mesmo ter sido outro.
O magnífico filme de Wim Wenders é sobre anjos, as acima de tudo sobre Berlim. O título original traduz-se por “Anjos sobre Berlim”, Fala da cidade, das suas pessoas, das suas histórias e encontra no desejo de um anjo uma forte humanidade que atravessa o filme, e a capital alemã, aproximando-se de uma altura decisiva da sua história. Ligada a vários nomes importantes da música do século XX; Berlim recebia por esta altura Nick Cave em exploração musical. É apropriado então que o culminar da história de Damiel, anjo interpretado pelo fantástico Bruno Ganz, que se apaixona por uma mortal e abdica assim do seu estatuto de criatura divina apenas pela oportunidade de amar e ser amado, seja ao som de um dos voos poéticos do Orfeu australiano. Damiel e Marion, a mulher amada, encontram-se ao balcão de um bar. Não se conhecem, mas sempre se conheceram, ela sempre sentiu a presença deste protector invisível. A música vibra e nem os anjos lhe conseguem resistir. Pudera: falamos do homem que transformaria mais tarde Kylie Minogue numa musa gótica; mas num pequeno momento, e na obra de Wenders, Cave vai ainda mais além: transforma-se no ponto de encontro entre o Céu e a Terra. Quando pleno, o que é o amor senão isso.
Há poucos clichés maiores do cinema indie do que o uso de canções para resolver clímaxes emocionais. Um exemplo sublime é a cena final de Little Miss Sunshine, que merece esta referência. No entanto, se vamos falar de canções em cinema indie americano, o primeiro exemplo que me veio a cabeça foi a cena pós-coito mais exuberante dos tempos recentes: em 500 Days of Summer, o Tom, de Joseph Gordon-Levitt, acaba de fazer o amor com aquela que ama. O que se segue é a imaginação fervilhante de Tom a funcionar no dia seguinte, dançando pela cidade ao som da irresistível canção de Hall and Oates, simpático para todos, colhendo os frutos do mundo no pomar da sua felicidade. Num filme que é sobre as expectativas do amor e a sua realidade (e o pormenor do reflexo de Han Solo é, nisto, delicioso), a cena não só estabelece a sensibilidade e optimismo de Tom, como amplifica aquela que, sabemos desde o início, é a queda destruidora que o espera. É o amor. Mas até lá, tudo é permitido no sonho e na fantasia, e sentimo-nos assim mesmo, carregados em ombros, capazes de devolver o sol à cidade e de levar as pessoas a ser a melhor versão de si próprias, festejando connosco a pequena vitória que é tudo no mundo.