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O monólogo é o banquete do actor e do guionista, uma exibição de dois talentos que necessitam de estar em comunhão para produzir um combinado explosivo. Quando bem feito, pode simplesmente obliterar um filme ou elevá-lo uma mudança acima. O actor certo ao comando do guião certo pode fazer história do Cinema, e todos nos lembramos de momentos memoráveis onde somos enfeitiçados por uma espécie de encantamento ininterrupto das palavras. Sejam discursos ou simples histórias, sejam grandiloquentes ou emocionais, os monólogos fazem parte dos filmes, tantas vezes como instrumentos narrativos. No entanto, pela arte do argumentista e o magnetismo do actor, alguns destacam-se de outros, independentemente do tamanho É deles que falamos este mês.
Regras básicas: não vou incluir voice-overs (o que deixa de fora, entre outros, a magnífica abertura de Adaptation ou a narração de Ray Liotta em Goodfellas); tentarei ao máximo repetir realizadores ou filme abordados em tops anteriores (embora abra uma excepção, que assinalarei); e tentarei, sempre que possível, considerar monólogos de facto e não discursos (o que exclui, por exemplo, Patton e The great dictator. Também evitarei adaptações teatrais, o que excluirá muito bom Shakespeare, dando prioridade ao Cinema. Vamos a isso!
Stone escreveu dois dos monólogos mais icónicos do Cinema – a celebração da ganância com o mantra “Greed is good” que inspirou duas décadas de Wall Street como uma roleta de casino e tornou Michael Douglas no símbolo do yuppie pós-moderno; e o discurso dos centímetros da vida, em Any given sunday, onde Al Pacino (e poucos actores existem melhores que Pacino no exercício do monólogo) reúne em seu redor uma equipa de futebol americano fragmentada palavra a palavra. No entanto, nenhum outro filme exibe os talentos de Stone para escrever longas falas como JFK. O filme propicia isso: subvertendo um princípio base do guionismo, é 90% exposição e 10% acção e em três horas e meia de fita, entra com uma cena de tribunal às duas horas. O protagonista Kevin Costner, na sua defesa de que o presidente Kennedy morreu devido a uma conspiração, tem momentos que podiam caber aqui. Mas a monumental performance de Donald Sutherland num monólogo técnico de dezasseis minutos é insuperável. É ritmado no frenesim da suspeita, esticado ao limite da crença e foi feito por Sutherland num único take, porque este decorarara as 15 páginas de texto. Depois de ter lançado a suspeita mostrando inconsistências na versão oficial do evento, Stone coloca Sutherland a enquadrar tudo, desde o poder do complexo militar-industrial norte-americano, passando pelas falhas básicas de segurança no dia 22 de Novembro de 1963. Tudo isto sem parar, tudo isto hipnótico, tudo isto cruzado pelo estilo de sobrepor várias tempos históricos num discurso que fazem de JFK a mais fascinante obra de Oliver Stone. Donald Sutherland devia ter sido nomeado para um Óscar. Quando esta cena acaba, a única conspiração que baila nas nossas cabeças é precisamente a que o impediu de receber essa honra.
Outro realizador/guionista que pôs em papel monólogos memoráveis é QT. Não me vou debruçar sobre o seu conhecidíssimo Ezekiel 25:17 de Pulp Fiction (que não é, tecnicamente, de Tarantino sequer: este roubou-o, palavra por palavra, de um filmes japonês obscuro chamado The bodyguard), nem sobre qualquer um dos hipnotismos de Christoph Waltz em Inglourious Basterds. Já no último terço de Kill Bill, Vol. 2, o lado melodramático deste díptico, o Bill do título, interpretado com panache e um tom divertido de ameaça por David Carradine, debita a sua interpretação do mythos do Super-Homem a uma Beatrix Kiddo que Uma Thurman defende com bravura ao longo de dois filmes. Ao contrário de todos os heróis de banda desenhada mais famosos, o ser de Krypton é o alter-ego em primeiro e o ego depois. O humano é a sua farda, o seu disfarce, porque se esconde do mundo através da maneira como nos vê. É diferente de quase tudo o que Tarantino coloca neste filme, porque pausa a acção para ser, por uma vez, algo com um foco e um objectivo: o de fixar e depois virar ao contrário uma mulher que foge de si mesma porque não se quer reconhecer no que faz de pior; e no mundo, o homem que ela deseja matar (com bons motivos) é quem melhor a compreende e aceita. É uma declaração de amor de tangente, mas sentida e honesta; e acima de tudo, o casamento perfeito entre o homem que tornou famoso kung-fu e um aforismo bem oriental.
Numa pausa da caça ao tubarão que faz mover a terceira longa-metragem de Steven Spielberg, Robert Shaw vive um dos mais arrepiantes monólogos postos em celulóide. A história (verdadeira, já agora, embora embelezada para o filme) do USS Indiannapolis horroriza: um navio que naufraga, centenas de homens à deriva no oceano, à disposição de cardumes de esqualos para agarrar como se o mar se tivesse tornado num super-mercado. O Quint de Shaw é apresentado até então como um daqueles lobos-do-mar sem qualquer jeitinho para pessoas, e quando acaba de contar a história percebemos porquê. O horror que viveu tornou-o agreste à sensibilidade, e Spielberg filma-o quase sempre sempre num plano fixo, usando a reacção horrorizada de outro personagem como o nosso próprio espelho. Conta a lenda que o monólogo foi escrito a seis mãos entre o próprio Shaw (que tentou interpretar a cena bêbado, sem conseguir; arrependido, pediu a Spielberg uma segunda oportunidade no dia seguinte, e gravou tudo num só take, perfeito) e os guionistas Howard Sackler e John Milius. O destino do personagem no filme amplifica as suas palavras, que fazem travar o barco e descer o que é até então um thriller de aventuras até ao âmago do medo de um só homem, que até então era maior do que a vida.
Os melhores filmes de Spike Lee lidam com a raiva, habitualmente de gente de cor contra o Sistema. No entanto, homens são homens, independentemente da raça, e Edward Norton traz a esta lista em The 25th hour um dos grandes momentos da sua carreira, e de Lee também. Interpretando Monty Brogan, um criminoso que sabe que vai passar sete anos numa prisão, o actor escolhe o espelho da casa de banho do bar do pai como confessionário e descarrega tudo o que lhe vai dentro. Ninguém escapa, nenhuma nacionalidade, nenhum objecto de ódio está fora do alcance da sua bílis e quando mais desenrola a lista de tudo o que lhe faz espécie, é notório que mais do que acusações, trata-se de passar a culpa a alguém. No entanto, e o momento de lucidez é que transforma esta cena num excelente soco emocional, apenas se pode culpar a si próprio. O filme é indiscretamente sobre a Nova Iorque depois do 11 de Setembro, à procura de se reerguer, e também de saber porque é que coisas más lhe parecem acontecer. É uma excelente alegoria, criada pelo guionista David Benioff (que mais tarde viria a controlar outro tipo de emoções extremas na série Game of thrones.
A obra-prima de Lumet é sobre um meio de comunicação onde muito se fala e o objectivo do guião é transmitir ao espectador um evangelho sobre como funciona a realidade. Misture-se isto e temos vários monólogos dignos de registo (num filme que registe, de forma mais do que digna, a podridão da televisão). Ned Beatty quase rouba tudo com uma única cena de monólogo onde descreve o papel das empresas como se de deuses se tratassem; no entanto, aqui é impossível não mencionar o magnífico discurso de Peter Finch que se tornou icónico pela sua frase “I’m mad as hell and I’m not gonna take this anymore”. Paddy Chayefsky escreveu-o como um homem possuído e o ar messiânico demente de Peter Finch, que morreria pouco tempo depois da rodagem, é a de alguém à beira do desespero, mas muito perto de uma epifania em directo. Uma epifania alucinada alimentada pelo medo, pelo álcool, por uma vontade suicida num mundo que esmaga e parece matar mais do que dar vida. O monólogo é transmitido, a palavra espalhada como um evangelho: um homem que apela à reacção e à loucura. É um apelo às armas, ao contrário, porque a guerra está perdida; e neste monólogo, essa desesperança está desenhada em cada linha de imagem.
Numa das obras maiores do Expressionismo alemão, Peter Lorre é Hans Beckert, um homem possuído por um desejo incontrolável de matar crianças. O filme de Fritz Lang não é sensacionalista, mas o horror que este crime faz crescer na nossa mente é o suficiente para de imediato o vermos como um homem hediondo. Uma sociedade em pânico confia nos criminosos para que apanhem este assassino e quando tal se dá, um julgamento popular estabelece-se para declará-lo culpado. É nesta altura que Lorre se lança num apelo desesperado em sua própria defesa. Não é ele quem mata, mas uma vontade que não consegue controlar. A desculpa é esfarrapada, mas os olhos bem abertos de Becker, as mãos apertando um peito que ameaça explodir, uma voz que surge aflita do que vai sobrando da consciência explica-se a uma turba que o vê não como um homem, mas sim uma praga, uma doença. Apesar do som não ser o melhor (de lembrar que fora introduzido poucos anos antes), a performance de Lorre e a insistência de Lang, um realizador excepcional, em fixar-se no seu actor dá-nos a estampa de alguém que se teme a si mais do que qualquer outra pessoa.
A primeira cena desta obra de grandes actores é um monólogo que funciona como napalm, queimando o resto do filme quase por osmose. Alec Baldwin, hoje um reconhecido parvalhão, é ele mesmo, mais do que intérprete, quando destrói uma sala onde estão só Jack Lemmon, Ed Harris, Alan Arkin e Kevin Spacey, arrancados da raiz à vez por palavras que são lambadas. O filme baseia-se na peça homónima de David Mamet, sobre a maneira como uma economia voraz e de como o valor do homem corresponde ao que produz economicamente para si mesmo. A riqueza como única medida de uma vida. Na peça original, tal é transmitido de fomra subtil; mas Mamet escreveu esta cena especificamente para o filme e é um festival: Baldwin reduz toda a gente a pasta de dentes, com frases que ressoam (“Fuck you, that’s my name!!”), cheio de ginga, como se fosse um comandante militar a arrancar os seus soldados de uma poça de lama. Por turnos destruidor e sedutor, Baldwin deixa uma tal marca que o filme dificilmente recupera; chamado pelos actores de “Death of a fucking salesman”, pela linguagem usada, Glengarry Glen Ross é sobre a destruição do homem, assim com letra minúscula, e este monólogo é a primeira salva de tiros.
Robin Williams era ele próprio um monólogo constante de explosões cómicas inesperadas. Quem viu os seus espectáculos sabe que era como ver um cego numa corda bamba, imaginando que bola em chamas nos atiraria ele a seguir: no entanto, a sua capacidade para destruir as defesas emocionais de um homem no ecrã era real. No filme de Gus van Sant, como o psicólogo Sean Maguire, o seu discurso emocional sobre o que é viver e conhecer a vida, sobre o amor à sua falecida mulher, sobre o que realmente importa, é a brecha que se abre nas muralhas do jovem prodígio que dá título ao filme. Abrasivo e escondido com um medo que passa por bazófia, Will Hunting é trazido à verdade das coisas pelas palavras de Williams, num convite a que se descubra e a que se resolva. Fá-lo de maneira calma, confessional, num registo cúmplice que foge ao que a terapia é; e Hunting começa a ver nele um amigo e não mais um médico que o tratará como um conjunto de sintomas. É uma interpretação excelente de um actor fantástico que se foi demasiado cedo.
Mas se Robin Williams nos atinge com uma história ficcional, em JCVD, Van Damme, um belga para o qual usamos a palavra “actor” porque temos preguiça de criar palavras novas, é ele mesmo neste surpreendente filme belga. Interpretando-se a si mesmo, mas também um personagem chamado JCVD, vê-se envolvido num assalto a um banco. Preso, desesperado, permite-se a uma confissão para a câmara e deita cá para fora as frustrações de toda uma carreira, dos desejos de um jovem que se perdeu na grande Babilónia. Olha a câmara e fala sobre si, num discurso tão pouco estruturado que só pode ser improvisado: o realizador deu-lhe uma indicação de direcção parecida com “Fala do que te lembrares” e a terapia é feita connosco como psicólogos. É brutalmente honesto, a cara enrugada de um indivíduo caído à procura de se reinventar, consciente dos seus problemas, pedindo a nossa simpatia para o filme a para si. Conhecido como ídolo de artes marciais, Van Damme permite-se a um raríssimo momento de autenticidade, que se torna ainda amais poderoso por isso. Os monólogos mais importantes são os interiores: não têm de ser necessariamente escritos de maneira genial, mas crus e reais; e Van Damme partilha connosco o mais épico destes.
Por fim, a arte de contar uma história. No centro deste filme, está uma figura, Keyser Soze. Kevin Spacey é Verbal Kimt, um criminoso meia-leca interrogado por um Chazz Palmintieri decidido a apanhar de vez a sua nemesis criminosa, um homem chamado Dean Keaton. Questiona então Kimt sobre um crime misterioso onde ambos estiveram envolvidos. O nome de Soze é referido várias vezes até chegarmos esta cena como se fosse o papão: uma figura mítica, aterradora, o tipo de entidade que pode surgir simplesmente por mencionarmos o seu nome. A historia que Kimt conta é aterradora por si, mostrando a força de vontade de Soze; mas a maneira como Kevin Spacey o apresenta é a de uma criança amedrontada; Synger filma o flashback de maneira difusa, como se Soze não fosse humano. Nunca lhe vemos a cara e a sua crueldade fica estabelecida. Um nome ligado a um conceito, a de um homem com tal determinação que se torna numa lenda. Alguém sem limites, sem fronteiras. “I believe in God, and the only thins that scares me is Keyser Soze”. Porque os monólogos mexem com coisas primordiais que existem em nós desde crianças, desde os discursos dos pais até histórias que ouvimos antes de adormecer; e Keyser Soze é um dos derradeiros homens do saco do Cinema.