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Foi num dia solarengo, mas não muito bom para a cultura portuguesa, que estivemos à conversa com Rui Carvalho, mais conhecido por Filho da Mãe, em pleno Jardim da Estrela em Lisboa, mesmo ao lado do local onde um triste momento para o país acontecia em simultâneo, as exéquias fúnebres do grande Nicolau Breyner.
A conversa foi muito boa e assentou essencialmente no novo trabalho a título singular do músico, “Mergulho”, mas falamos também de outros projetos, em especial do, também recente, “Tormenta”, com o baterista Ricardo Martins. Confiram a nossa conversa.
“Mergulho” já é o segundo álbum feito em regime de residência. Tem sido uma necessidade criativa fazer retiros para “cozinhar” e consolidar as ideias que vão surgindo?
Não sei bem se é uma necessidade, é mais um interesse. Já o primeiro disco não é uma residência oficial, mas foi quase uma residência. Fui para casa do Makoto, que produziu o disco, e basicamente habitamos a casa dele durante mais ou menos uma semana, que é um palácio assim grande, e as pessoas entravam e saíam e iam amigos, outras pessoas, mais opiniões, acabamos por fazer uma música juntos, portanto acabou por ter mais ou menos essa característica também. Eu gosto muito de sair de Lisboa para fazer coisas, não tenho nada contra Lisboa, mas é mais para sair da rotina e criar uma rotina só musical, mais nada, acordar para gravar, deitar-me a pensar naquilo que gravei e nesse sentido acho, como vou para lá e tenho ido nos últimos discos, não vou com o material todo, vou com uma ideia já do que quero fazer no disco e espero que o material saia lá, por isso é que faço durante algum tempo, ter uma semana para se quiser voltar atrás volto atrás… se quiser ir por outro caminho… ter tempo para fazer essas coisas todas. Isso num ambiente de residência é mais fácil do que ir para estúdio, que é uma coisa um bocadinho mais cética, de horas marcadas, etc. E eu gosto do ambiente de residência, como correu bem da primeira vez, gosto mais disso do que ter o disco todo na cabeça e chegar e em dois dias gravar. Gosto que o disco para mim tenha a ver com o momento e esse momento fica cristalizado no disco e cria-se também nos almoços, cria-se nos jantares, cria-se enquanto se fala com as pessoas, etc. Acho que é um ambiente se calhar mais criativo.
As ideias vão para lá meio rarefeitas e depois chegam e solidificam…
Tu encontras um caminho. Depois há a pressão do tempo, com a qual eu funciono mal / bem, não gosto nada do tempo e de ter limites para fazer as coisas, mas se não o tiver não sei quando é que acabo e então há uma semana, pelo menos, e tu paras de ouvir certas vozes que não estão a ajudar e encontras um caminho, esse caminho provavelmente já está completamente na cabeça, mas é fixe sair à frente dos microfones.
Provavelmente esse caminho já estaria na cabeça, mas há sempre outras opções.
Foi exatamente o que fiz desta vez, ainda por cima como queria fazer alguma coisa um bocadinho diferente, não deixa de ser um disco de guitarra com alguns pedais no meio, portanto é óbvio que nunca é assim tão diferente, mas para mim é bastante diferente dos outros, é muito simples, conta uma história, tem uma narrativa associada, tudo isso não conseguia ter posto na cabeça antes, a história vou fazendo há medida que a vou tocando, há coisas que estão lá porque fazem sentido estar lá, só, e não arranjo grande justificação para aquilo mas sinto que faz sentido lá estar, por outro lado, se tivesse tido mais tempo para pensar as coisas, havia certas coisas que tinha feito diferente não é? Pronto, essas coisas guardam-se para o disco a seguir. E depois há a tendência para complicar, se eu estiver a trabalhar numa música em casa, se calhar vou fazer mais um certo tipo de dedilhados, vou procurar uma coisa assim um bocado mais intrincada, como são os outros… e eu queria fazer uma coisa mais simples, ali tem de sair isso e não se pode estar muito tempo à procura de tudo e é mais importante essa parte emocional que o disco transmite do que, neste caso, se tinha uma música “A” ou “B” ou uma música desta maneira ou de outra. E lá foi fácil, até com o som da igreja (que tinha um som do caraças), e uma pessoa vai atrás disso também.
…se calhar o que em casa tinha dez mil notas ali tem uma.
Exacto. E fica bem assim e eu gosto disso. Acho que tens que procurar os espaços para fazer isso, até porque um espaço psicológico diferente para mim ajuda-me.
Procuramos gravar onde achamos que ia ficar melhor lá no espaço, como o espaço era interessante também em termos acústicos. Aquilo é um mosteiro e, por exemplo, havia um espaço de antigo refeitório, em pedra e em abóbada, que tinha um som muito mais cristalino, mais agudo, mais bonito… e gravamos lá uma música, procuramos tentar o som das escadas para fazer uma espécie de re-amping, colocámos aquilo com o som dos monitores alto e captávamos cá em baixo com microfones na nave, tentamos fazer isso também numas escadas de pedra para ver qual era o som que lá chegava e como se podia brincar com ele. Usámos isso um bocadinho como plasticina, que é uma coisa que num disco acústico nem sempre acontece.
A mistura da complexidade dos efeitos e do processamento áudio com a simplicidade de uma guitarra acústica já era algo integrante no trabalho de Filho da Mãe, mas neste “Mergulho” é muito mais explicita e significante, especialmente para ajudar a contar a história global do álbum e naquelas músicas mais de passagem. Há alguma razão especial para tal?
Eu ao início não gostava nada dessa ideia e se calhar ainda continuo a não gostar, eu lembro-me muito bem, como estava muito ligado ao rock, usava loops e efeitos ao mesmo tempo que usava um som de guitarra muito direto e assim meio roufenho, mas os efeitos eram uma componente importante e então eu nunca tirei isso de Filho da Mãe também porque é um bocado uma zona de conforto na verdade. Neste disco acho que as músicas são muito mais acústicas… são muito mais canções, mas acabaram por surgir os efeitos também porque o som (e na verdade o disco acaba por se chamar “Mergulho” porque aquilo me sugeria um mergulho e eu ouço mergulhos ali) e os efeitos acabaram por ser importantes para lhe pôr uma cor em cima. Eu gosto de ter uma coisa acústica e muito solitária, ao mesmo tempo que tens uma coisa muito profunda, parece que se está a passar lá em baixo… Usar estes dois ambientes tão diferentes dá um impacto diferente, dá um impacto emocional diferente a um concerto desses, surpreende as pessoas ou puxa-as para um universo diferente.
Este disco pode ser tocado de uma maneira muito acústica, quase sem efeitos nenhuns, e pode ser tocado em histeria com esses efeitos todos e eu gosto, é muito bipolar nesse sentido. Mas há partida eu não tinha isso como uma necessidade, não precisava de lá estar, só que começámos a ouvir e usar seria engraçado, eu uso um grave e quando nós ouvíamos o som da sala e como aquele grave começava a crescer fomos atrás disso e criámos esses momentos “plásticos”.
Esses efeitos foram feitos em tempo real?
Não tanto como as minhas outras coisas onde explorava mais isso durante algum tempo, improvisando, mas depois acabamos por “colar” no disco, não se consegue fazer exatamente assim ao vivo, não dá. Não tenho o mesmo som, primeiro, tem algum processamento, mas o processamento não é relevante, é mais aquela sala que era importante. Uso os efeitos também por sentir que às vezes é uma coisa um bocadinho mais confortável para mim. Para o Teatro Maria Matos convidei três pessoas para fazer o concerto exatamente porque estamos a tentar ter esse feeling.
Desta vez as colaborações são um prato forte do álbum e mesmo o recente trabalho, Tormenta, com o Ricardo Martins. O Filho da Mãe está a revelar os seus irmãos?
Esses irmãos já lá estavam há muito tempo. Eu faço coisas essencialmente com amigos, amigos que eu conheci pela música, a maior parte dos meus conhecimentos têm alguma coisa a ver com a música, eu diria que 80%, e é bom fazer estas coisas com amigos porque as pessoas já se entendem mais ou menos, há uma conversa que já não se precisa de ter. Às vezes também é porreiro não fazer com amigos para teres outro tipo de experiências, mas isto acaba um bocado por acontecer, como no meu concerto com o Ricardo, fizemos uma apresentação em Lisboa e pusemos os amigos todos no palco também ou alguns deles. Já tínhamos feito isso no Maria Matos há uns anos com uma coisa que chamamos “Fazer para desistir”, quando apresentei lá o “Palácio”, e esse espírito familiar passa para a música e passa para as pessoas que estão a ver, fica um bocado como uma família no palco. Depois tenho uma coisa meio fetichista com Filho da Mãe, que é ter alguma coisa sempre de alguém que esteve envolvido no disco; no “Palácio” eu, o Marco António e o João (Jonas) fizemos uma música; no “Cabeça” foi o Guilherme Gonçalves (que o produziu) e a Cláudia, fizemos uma música os três e desta vez nós não fizemos música nenhuma em conjunto, mas pensei que a apresentação em Lisboa tinha que ser com as pessoas que estavam mais próximas, portanto, o Brandão que produziu o disco e que mete lá o dedo há grande numa malha ou outra e eu acho muita piada, gostei muito de trabalhar com ele, o João era a pessoa mais próxima do disco, embora não tenha lá estado connosco mas era uma pessoa com quem eu ia falando mais acerca das música e a Cláudia esteve lá mais uma vez, a trabalhar para a capa também, e então o objetivo é tentar fazer alguma coisa que una sempre as pessoas que estavam naquele caso, por oportunidade, mais próximas. E para além disso é muito mais fixe tocar com pessoas, às vezes, do que tocar sozinho, sozinho tu consegues explorar coisas muito boas em relação a ti musicalmente, mas é muito mais divertido tocar com pessoas e eu estou a tocar sozinho há tanto tempo… É porreiro quando fazes coisas sozinho porque a parte muito honesta da tua personalidade sai para ali, mas eu gosto de tocar sozinho, gosto dessa solidão toda, mas há momentos interessantes para celebrar com as outras pessoas que têm a ver com aquilo.
“Mergulho é permeável à pedra, à terra e à gente” é uma frase usada para descrever este trabalho. É a constatação de que tudo é influenciado pela mais ínfima coisa que nos rodeia?
Basicamente isso é sinónimo de uma residência artística. Fomos para Amares e as pessoas que lá estavam e as pessoas que colaboraram com o disco tentaram encontrar o espaço, o zelador, Victor Gonçalves do espaço, gentes da terra… tudo isso de alguma maneira entra, às vezes não de uma maneira direta, extremamente indireta mas está lá. É um disco que é produto de um sítio. Nasceu ali, foi composto ali praticamente todo e pertence ali de alguma maneira.
Estas colaborações todas, são como uma espécie de continuação daquele trabalho com os Linda Martini, o “Vaca Velha”?
Eu acho que quando uma pessoa toca sozinho deve sempre ir colaborando com as outras… deve, não sei se deve, mas eu quero. Tenho o meu disco a solo, imagina, e depois trabalho esse disco e depois a partir dessa altura começo a fazer uma colaboração, começo a colaborar com outra pessoa e depois fecha-se o ciclo e volta-se ao mesmo. Uma pessoa também vai crescendo musicalmente e vai descobrindo outras coisas.
Juntando a este trabalho ao disco com o Ricardo Martins, lançados quase em simultâneo, dá para perceber que os últimos meses foram de muito trabalho, trabalho esse daquele que normalmente é menos visível para o exterior (estar a gravar, ensaiar, etc.). Qual a sensação de finalmente abrir as cortinas e revelá-lo ao público?
A certa altura quando temos isso tudo dentro e ainda não saiu acumula-se alguma ansiedade, as coisas são suposto viverem no palco, não é só num disco, embora seja uma interpretação daquilo que lá está são duas coisas completamente diferentes e sabe bem. Eu estive algum tempo parado, por assim dizer, fui tocando menos, etc, foram dois anos assim um bocado mais complicados e de repente rebentou-me dois discos na mesma altura, nem se quer foi muito planeado na verdade, em Portugal estar a trabalhar em duas coisas assim, elas na verdade são muito diferentes, mas as pessoas também não querem saber, é um país pequenino e as coisas baralham-se e ficam mais ou menos confusas, mas às vezes a confusão também é boa… mas quando as coisas saíram finalmente, tanto no caso meu e do Ricardo isto foi um percurso longo, quando começámos a tocar começámos a pensar fazer uma coisa acústica e acabamos aqui. Tem na mesma a qualidade de improviso nalgum sentido de que não há grandes coisas planeadas e vê-se como é que sai.
Aí é um ponto que marca também a diferença do projeto de Filho da Mãe com o projeto com o Ricardo.
Completamente. O projeto com o Ricardo é o projeto com o Ricardo, que agora assume esta forma e daqui a uns anos se quisermos tocar outra vez podemos fazer um disco só de metais, não tem absolutamente caixinha nenhuma, não tem um percurso definido.
Às vezes pode ser um bocado limitado em termos criativos dividir as ideias que se vai tendo pelos vários projetos de que se faz parte.
Sim, isto não é nada disso. No caso das minhas coisas a solo, se calhar até tem alguma. Quero sempre que seja um diálogo de um gajo com uma guitarra, em princípio vai ser sempre a clássica mas pode até não ser, mas tem um formato se calhar um bocadinho mais a solo e com as outras colaborações, por exemplo esta com o Ricardo, não tem formato nenhum. Foi um bocado uma celebração, já não tocávamos há algum tempo, fomos beber ali algumas coisas que fazíamos juntos noutras bandas, mas tentamos também sair muito disso. Acho que não tem nada a ver uma coisa com a outra, são dois discos muito diferentes, são dois discos muito bonitos por acaso, mas têm coisas em comum, por exemplo a capa tem a Cláudia em comum (a Margarida também trabalhou na capa), eu gostei muito e preciso muito que as coisas estejam cá fora para começar a correr a vida com normalidade. Tenho muitas datas marcadas, o que é fixe, para além da confusão toda, vai ser um ano muito complicado, mas vai ser um ano bom. Cheio de coisas que não se planearam muito bem (risos) e às vezes isso é bom. Eu e o Ricardo ainda percorremos aí um bocadinho o deserto até conseguir ter aquilo pronto para sair.
Mas não se obrigaram a definir rigidamente uma data para lançamento?
Não, mas depois a partir de certa altura essas coisas existem por si só e os timings existem e depois depende se os estás a controlar ou não (risos), isso já é outra conversa.
Às vezes viver só da música tem esse lado menos bom, as pessoas precisam de ter algo para viver e por isso precisam de deitar algo cá para fora e mostrar trabalho.
Há coisas que não são nada musicais aqui metidas pelo meio mas que uma pessoa tem de ter em conta, isso é um facto. É uma coisa chata, mas viver da música é lindo, é mas é muito difícil e até dar tenta-se. Às vezes estar a pensar nestas coisas quando uma pessoa devia estar a pensar noutras mais interessantes. Mas são escolhas que se fazem, mais arriscadas, mas compensa em muitas outras coisas.