Entrevista


Mourah

Prefiro ser pobre e digno, do que ser rico e triste por não ser eu próprio.


© One Letter Photography

Foi em 2003 que o músico português Mourah se estreou com o aclamado “From One Human Being To Another”. De lá para cá apenas o silêncio. Um silêncio interrompido, esporadicamente, por algumas colaborações com Alex FX, Miguel Cardona (Coldfinger) ou Armando Teixeira (Bullet, Balla), entre outros. Mourah regressou à Suíça, país para onde tinha ido viver com cinco anos de idade. Quanto aos álbuns em nome próprio, esses pareciam fazer parte do passado. É certo que o período de hibernação foi extenso, mas também é verdade que o coração musical de Mourah nunca deixou de bater bem forte. O ritmo dessas pulsações acabou por pautar o regresso às edições discográficas. O novo álbum chama-se “Kardia” e foi lançado, em Março, com o selo da alemã Mole Listening Pearls.

Cerca de 12 anos separam o teu álbum de estreia, “From One Human Being To Another”, de “Kardia”. Esta paragem tão longa deveu-se, essencialmente, a quê?
Esse é um aspecto que interpela muito as pessoas. Será, porventura, o comeback mais inesperado dos últimos tempos! A verdade é que a vida dá, por vezes, grandes voltas. Depois do primeiro disco, editei ainda um EP com a editora da altura, a Zona Música, antes de ela ir à falência ficando a dever milhares de euros a muitos artistas. Fiquei algo desapontado com o business envolvente. Daí ter preferido voltar à Suíça e acabar os meus estudos. Fui compondo sempre, inclusive para peças de teatro em Genebra. Agora, mais maduro, já sei lidar com as adversidades do meio, digamos assim.

Olhando para um hiato tão prolongado, estarei muito longe da verdade se disser que olhas para “Kardia” como um novo começo?
De facto, é um novo começo no sentido em que a minha música evoluiu, tal como eu. Penso que sou melhor compositor e intérprete agora. Mas, por outro lado, alguns dos temas do álbum nasceram e cresceram em mim já há algum tempo. No meu interior houve um continuum. “Kardia” surge como uma espécie de colectânea de obras pensadas ao longo do tempo. A verdadeira fractura vai acontecer no próximo disco, que será mais orientado num concept album, mais homogéneo. Já tem título e filosofia, no que diz respeito à produção, e está prometido que não vai demorar uma década para ver a luz do dia.

©One Letter Photography

O primeiro vídeo oficial do novo disco chama-se “Icarus 101” e, em cerca de três meses, conseguiu arrecadar mais de 52 mil visualizações no Youtube. É certo que, em 2003, “From One Human Being To Another” foi extremamente bem recebido pela crítica. No entanto, acreditas que conseguiste atingir um outro grau de maturidade artística que faz de “Kardia” um disco mais imediato, criando uma maior proximidade com quem o ouve?
A minha ideia, e é recorrente, é a de propor uma música intelectualmente honesta, sem concessões a pensar num eventual êxito comercial, mas que ao mesmo tempo seja acessível na sua abordagem. O Serge Gainsbourg é uma referência nesse aspecto. Alguém que se revelou genial por ter proposto verdadeiras pérolas, tanto a nível de composição como de letra, mas oferecidas num embrulho pop(ular). Identifico-me muito com ele nessa forma de abordar a experiência musical. Para mim, a finalidade da música, além de uma necessidade visceral de expressão própria, talvez espiritual até, é a de partilha com as pessoas. E nesse aspecto gosto de facilitar a leitura da minha música.

Houve aquele dado momento em que pensaste que querias voltar a gravar um disco. Lembras-te do quando e do porquê de isso ter acontecido?
Essa vontade nunca me abandonou durante estes anos todos. Só demorou mais tempo por vários factores. Se a editora na altura não tivesse ido à falência, se o mercado da música não tivesse entrado num colapso trágico e absoluto, se tivesse encontrado as pessoas certas num determinado momento, talvez “Kardia” tivesse sido o primeiro de muitos outros. Gosto de pensar que tudo acontece por uma razão. No final, o que conta é o resultado. E estou satisfeito com ele.

Como se desenrolou todo o processo criativo que envolveu a elaboração e a gravação de “Kardia”?
Foi um processo contínuo espalhado sobre dois anos. Em 2013 fui fazer fotos no Porto para a capa. Nasceu aí mesmo, começou realmente a materializar-se nessa hora H. Tinha nas gavetas muitos esboços musicais e letras, pequenas demos, apontamentos. Uma Feira da Ladra de ideias, um Mercado do Bolhão de sensações para ornamentar musicalmente. Aos poucos, fui desenvolvendo essas ideias, estruturando o todo em temas. Seguiram-se as gravações de vozes, guitarras e baixo em casa, no meu estúdio, as primeiras camadas de produção na vertente electrónica. Mais tarde, fui gravar as cordas na Macedónia, o contrabaixo em Lisboa, onde também gravou a Kika Santos, as baterias e o piano em Lausanne. Por fim, a mistura e o mastering também foram feitos em Lausanne. Acrescentam-se os ambientes nas captações sonoras (field recording) feitas em Nova Iorque, Bombaim, Porto e Bangkok, e temos um disco que tomou forma em vários lugares do mundo. Fazendo eco ao primeiro disco, este poderia ter sido intitulado “From One Place To Another”.

O conceito do álbum, de uma forma simples, é mostrar que a raiz de tudo, o meu coração musical (daí o grego “Kardia”, para enfatizar a raiz etimológica da palavra), contém os estilos musicais que me formaram e com os quais cresci. Este disco surge como um caleidoscópio, sem medo de chocar estilos, pois todos têm a minha sensibilidade. Depois cada um é livre de gostar do todo, ou de nada, ou de alguns temas. A música é, e será sempre, a última expressão democrática a morrer.

Nota-se que muito daquilo que é a tua sonoridade vai beber, essencialmente, ao trip hop. Achas que esse género musical soube evoluir desde os anos 90 e oferecer, nos dias que correm, inovação e originalidade? Tu, em particular, usas alguma fórmula especial para o fazer nas tuas composições?
Pessoalmente, sempre fui péssimo a definir estilos e categorias, especialmente nos dias de hoje em que a música apresenta, por vezes, muita mestiçagem estilística. Diria que a trip hop é para Bristol, e outras partes de Inglaterra, o que o fado é para Portugal. Algo de muito sui generis e próprio de uma época e lugar. O fado resiste ao tempo por ser uma música acústica, ou seja, a evolução faz-se porventura na interpretação ou nos arranjos. Mas os códigos são muitos e muito rígidos. No caso da trip hop, a sua génese encontra-se no sampling e mistura de sons electrónicos (que inevitavelmente envelhecem, a bem ou a mal, com a evolução tecnológica) e de sons acústicos. Nesse sentido, a linguagem musical do trip hop parece ter envelhecido um pouco, tirando os temas geniais dos Portishead, Massive Attack e alguns outros. Mas abriu claramente portas. Hoje em dia, por exemplo, o James Blake, os Flying Lotus, Chet Faker, Son Lux, Burial, FKA Twigs provêm, parece-me, do trip hop. No meu caso, o que resta desse estilo é a vontade de criar um elo entre sons acústicos e electrónicos e uma melancolia própria a esse estilo, algo de agridoce, sombrio e luminoso ao mesmo tempo. Faz-me lembrar… a saudade! Tiro isso também do fado, da minha alma lusitana.

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Como se deu a tua ida para o estrangeiro? De fora, como é que olhas para o modo como os músicos nacionais são vistos e tratados no nosso país?
Já vivo na Suíça desde os cinco anos de idade. Por força da história recente de Portugal, sou um exemplo como milhões de outros da diáspora portuguesa. Bem como os quase cem mil por ano que continuam a emigrar na busca de oportunidades. Não se pode dizer que tenha acabado. Em relação à condição dos artistas em geral, infelizmente é um pouco igual por todo o lado. Somos os bobos da corte dos tempos modernos. Divertimos, gostam de nós para animar as vidas, por vezes tristes, mas não nos dão o devido crédito. Pensam que, como trabalhamos com paixão, não precisamos de dinheiro para viver. As pessoas já não compram música, pensam que se trata de um bem público, de um direito não negociável de per si.

O “Kardia” chega às nossas mãos através da editora alemã Mole Listening Pearls, responsável por editar nomes como De-Phazz, Lemongrass ou Yonderboi, por exemplo. Como é que surgiu esta colaboração e como foi trabalhar para uma editora como a Mole?
A editora contactou-me dizendo que via em mim sério potencial e que me dava total liberdade musical. Por essas razões assinei com eles. Também pelo historial da Mole. No entanto, a verdade é que hoje em dia até essas editoras com um passado dourado não têm muito poder. E, com toda a franqueza, nesse aspecto esperava mais da parte deles, inclusive mais promoção. O mercado da música está simplesmente à beira do suicídio e só os tubarões das majors ainda dão um ar da sua graça. Mas qual é o preço que os artistas deles têm de pagar?

Tens datas previstas para concertos de apresentação do “Kardia” em Portugal?
De momento não, infelizmente. Actualmente não há dinheiro para grande coisa e, por isso, preferem investir em artistas estrangeiros já confirmados. Pode ser que as coisas mudem em breve. Pelo menos, é esse o meu desejo e o público português é, de facto, incrível. Gostava muito de voltar.

Há pouco mencionei o Youtube, mas as plataformas de divulgação musical existentes na internet são inúmeras. Porém, como em tudo na vida, existe o reverso da medalha. Vês a internet como uma coisa útil ou negativa?
Olho para a internet como uma evolução inevitável e incontornável, uma espécie de fatalidade, útil mas longe de ser perfeita. Pode ser um meio muito bom para promover música, para fazer a aproximação com as pessoas que nos seguem, mas é, de facto, um meio sem fronteiras nem leis onde tudo é possível. Como disse antes, a internet cria nas pessoas a ideia de que a música é gratuita e isso é péssimo para nós, músicos. Não sou conservador, mas gostava da ideia do suporte musical tal como o vinil ou o CD. Materializava o trabalho do artista, dava-lhe mais peso e crédito.

Num mundo globalizado, como é o nosso, houve certas tendências que se foram invertendo. Há toda uma panóplia de plataformas que, parece-me, acaba por banalizar e facilitar o aparecimento efervescente de toda e qualquer espécie de “artistas”. Achas que a música feita hoje ainda tem o poder de transformar e de mudar o que quer que seja?
Boa pergunta… Se tudo é baseado no dinheiro, no proveito, como podem os músicos genuínos (e não os entertainers efémeros) ganhar os seus lugares e serem ouvidos? Exceptuando alguns casos, penso na Björk ou nos Radiohead, para ascender a um alto patamar é preciso vender a alma ao diabo. Em breve vai actuar a “verdadeira” Lady Gaga com o Toni Benett, no Montreux Jazz Festival, aqui na Suíça. Vamos descobrir a excelente artista que é, vinda da escola do jazz, bem longe da imagem comercial e musicalmente pobre que a sua super-poderosa editora lhe impõe para vender e criar buzz. Prefiro ser pobre e digno, do que ser rico e triste por não ser eu próprio.


sobre o autor

Pedro Gomes Marques

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