Entrevista


Rui Portulez

O que falta à música portuguesa é consolidar-se como uma primeira escolha do público e dos media.


© 5.º Festival de Jazz de Viseu

Rui Portulez é um dos mais importantes nomes da cultura nacional: escreveu para o Público, foi voz nas míticas rádios XFM e Oxigénio, foi Director de Programas das principais rádios Universitárias do país (Coimbra e Minho, RUC e RUM, claro está). Hoje, é caça-talentos da Valentim de Carvalho e dedica-se ainda à documentação de fenómenos musicais “ponto pê tê”. E se o apanharem a jeito, entre um fino e outro dá-vos valiosas lições de música, sempre de olhos firmes na História que agora cada vez mais redefine o futuro da indústria.

Foi em 2016 que se lançou na aventura de medir o pulso à edição discográfica independente contemporânea, de norte a sul, e da produção Antena 3 saiu a websérie I Love My Label. São seis episódios agora disponíveis online, e que serão exibidos num novo formato em estreia na edição de 2017 do festival de cinema Porto/Post/Doc.

Como nasceu o I Love My Label e o interesse em olhar para o panorama da edição independente?

O I Love My Label nasceu do encontro de interesses entre mim e a Antena 3, originado pela vontade comum de documentar, investigar e divulgar a música independente que se faz em Portugal, e reforçado pela percepção de que nunca como hoje houve tanta quantidade e qualidade de música boa feita no nosso país.

Foi fácil optar pelo panorama actual vs o passado da edição independente?

Foi, por dois motivos. Primeiro, porque não havia espaço nem tempo para fazer todas as indies que gostaríamos. E depois, porque a ideia sempre foi dar visibilidade e dessa forma apoiar a produção nacional contemporânea. E aqui conseguimos encontrar um ponto de equilíbrio e de continuidade, e resiliência, por parte das editoras retratadas, algumas com mais de 10 anos de actividade e, ainda assim, com um reconhecimento aquém do seu contributo para a música portuguesa.

Como foi o processo de seleccionar as editoras documentadas? Faltou alguma na tua lista? Teremos um volume 2, quem sabe, dentro de uns anos?

O processo foi complicado, porque de uma lista inicial de mais de 30 editoras, a maior parte delas no activo, tivemos de escolher 6. E aí, tal como já referi, relevamos factores como a continuidade e a diversidade estética, e conseguimos ir da música electrónica ao metal, passando pelo hip-hop. Ficaram muitas editoras de fora e penso que seria interessante continuar o projecto perseguindo os objectivos iniciais de documentação e divulgação.

Estes teus documentários têm um tom muito positivo, relatam-se as vitórias, as conquistas. Habitualmente, quando o assunto é arte em Portugal, destaca-se sempre o fado “ninguém nos apoia, ninguém quer saber”. O tom foi intencional ou, nem por isso, deveu-se aos interlocutores?

Os documentários curtos têm uma duração limitada e não é possível falar de tudo. Claro que também foram focadas questões como o pouco apoio que a música portuguesa tem, a falta de interesse e visão política do Estado e o potencial económico que o sector, de um ponto de vista económico tem para o país (e basta olha para exemplos da Suécia e da Islândia para perceber como o investimento pode ter um retorno exponencial, não só em termos de negócio directo, como em termos culturais e outros), mas decidimos focar-nos sobretudo na música enquanto paixão, imaginário e atitude.

Mas neste documentário longo que vamos estrear no Porto/Post/Doc, o tema central é a possibilidade e a vontade de viver da música em Portugal, como músico profissional. E aqui já entram críticas e desabafos, mas nunca um espírito de “fado” ou de queixume. Interessou-me sobretudo perceber as condições de possibilidade e de vontade, e a perspectiva realista, próxima e vivida de quem faz música em Portugal, quer continuar a fazer e de que modo é que poderá concretizar essa ambição. E tivemos o privilégio de poder ouvir artistas bastante diferentes em idade, práticas e experiências, do Tó Trips à Débora Umbelino (Surma), passando pelo B Fachada, Moullinex ou Jorge Coelho, conseguindo fixar um retrato de conjunto bastante completo do que é a música portuguesa hoje e como é fazer música independente em Portugal.

Independentemente da evolução tecnológica e da arte de fazer música, quando recordas o teu tempo na RUC na década de 90, qual é a grande diferença entre os artistas nacionais independentes de hoje e dessa época?

A grande diferença é a maior quantidade, acompanhada de maior qualidade e diversidade. E mais consistência na música que fazem. Mas sempre houve boa música independente, e não só, boa música em geral, feita em Portugal.

A década de 90 foi um período de mudança, marcado pelo aparecimento fracturante da Internet e pela sua expansão, (e daí ser impossível ignorar a evolução tecnológica) que não só democratizou o acesso à escuta da música, como ao software e à produção musical, como marcou o princípio do declínio do modelo de negócio das editoras, e os lucros a passarem das vendas dos CDs para os concertos ao vivo, e abrindo também a possibilidade de lançar uma carreira musical com menos meios e estruturas mais simples e leves.

O acesso aos instrumentos, por exemplo, era então mais fácil e barato que nos anos 80, por exemplo. Mas além disso, Portugal abriu-se ao mundo e os portugueses ganharam mais mundo, mais diversidade, mais horizontes, e tudo isso ajudou.

São cada vez mais permeáveis à influência que vem de fora ou pelo contrário, mergulham na sua identidade portuguesa?

Somos cada vez mais permeáveis ao mundo, no sentido em que cada vez mais é mais fácil aceder ao conhecimento e à enorme diversidade de tudo. E é essa percepção, quando é crítica, que depois nos faz também mergulhar na identidade portuguesa, com a mesma curiosidade, mas numa escala diferente.

Ou seja, penso que a recuperação da música nacional (dos cantautores ao pós-punk dos anos 80, da música ligeira à tradicional) e do cantar em português que foi novidade e se notou por contraste na segunda metade dos anos 90, com a FlorCaveira a levantar essa bandeira, foi algo que ficou definitivamente implantado, de tal forma que cantar em português é natural e uma primeira escolha de quem faz música, mas cantar em inglês não é sinónimo de distinção, e é aceite como uma mera opção estética, sem mais.

E é mesmo mais fácil descobrir música portuguesa nova graças à tecnologia ou continuam a ser os meios em que circulamos que proporcionam o contacto?

É mais fácil, mas é preciso ir procurá-la e ter vontade de o fazer. No meu caso, é na internet e sobretudo no bandcamp, mas também os concertos ao vivo, que procuro coisas novas. E conversando com as pessoas, seja na internet ou ao vivo. Há um trabalho de mediação importante a fazer, sobretudo na descoberta e promoção de coisas novas.

Como vês o futuro da edição independente em Portugal? Que labels ou projectos recomendas?

O futuro é risonho, porque este movimento em que estamos hoje mergulhados parece-me imparável. Conseguiu-se dar o salto e mudar o paradigma de que a música portuguesa não vende e não tem público. Hoje vende e tem público, e vende cada vez mais e tem cada vez mais público. E a música independente contribui para esse movimento de expansão e de conquista de públicos. Basta ver a popularidade de festivais como o Bons Sons, ou a naturalidade como os portugueses começam a surgir em festivais maiores.

Há uma série de nomes independentes que têm capacidade e já estão, de resto, a entrar no mainstream. Curiosamente, muitos deles a escrever canções e a produzir para outros artistas, e até, imaginem, a concorrer ao Festival da Canção, para além de já serem capazes de esgotar salas como o CCB, Aula Magna, Tivoli ou o São Jorge. Gente como o Samuel Úria ou o Legendary Tigerman, Capitão Fausto, Benjamin, Capicua, Moullinex, entre outros.

E estás esperançoso quanto à música portuguesa? O público está mais receptivo ou ainda é difícil expor certos géneros, correntes ou manifestações de subculturas?

De uma forma geral, penso que o que falta à música portuguesa é consolidar-se definitivamente como uma primeira escolha do público e dos media. E isso passa por uma coisa muito simples, que é apostar mais e de forma continuada, nas rádios, nas televisões, nos festivais, na imprensa, nos blogues. Se olharmos para as rádios, televisões e imprensa de cobertura nacional, que música portuguesa encontramos? E que música encontramos, quando não encontramos música portuguesa? Se às pessoas que não procuram coisas novas, não mostrarmos coisas novas e mais do mesmo, elas vão continuar na mesma…

Por fim, qual o disco nacional que tem de rodar nos nossos ouvidos em 2018 e que anda a escapar ao radar das massas? Pode ser de qualquer época! 🙂

Eu, na qualidade de A&R da Valentim de Carvalho, parte interessada, penso que os discos de S. Pedro e Ermo, são dois bons exemplos do que atrás referi. S. Pedro como exemplo de boa música pop que pode ser escutada e apreciada pelo grande público, como penso que virá a ser em pouco tempo. E os Ermo como proposta rompedora, exploratória e desafiante que vem propôr a diferença, o risco, novos horizontes musicais. E depois, sejam curiosos, e procurem…


sobre o autor

Isabel Leirós

"Oh, there is thunder in our hearts" (Ver mais artigos)

Partilha com os teus amigos