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Com uma forte componente identitária, num registo musical contemporâneo, “A Morte do Artista“, o primeiro trabalho discográfico dos mutu mistura os diferentes percursos dos músicos envolvidos. A esse cruzamento de influências juntam-se mensagens que pretendem despertar no ouvinte pensamento crítico sobre problemáticas sociais dos dias de hoje.
A expressão popular que dá nome ao disco serve de invólucro dos vários temas abordados. Assistimos hoje a um desbaste colectivo da criatividade pela pressão crescente das rotinas quotidianas e do fluxo migratório colectivo para os grandes centros urbanos. Deixamos secar as nossas fontes criativas, as nossas origens, pessoas e costumes em prol do sonho do sucesso laboral e financeiro. Abdicamos muitas vezes de quem somos e do que realmente queremos, por este desconfortável conforto. Este disco é por isso uma chamada de atenção, um toque de despertar introspectivo para estas questões sociais e individuais que se tornam urgentes. Na era da tecnologia avançada criámos e desenvolvemos inteligência artificial criativa, algo irónico, pois enquanto as máquinas se tornam artísticas, nós definhamos esta dimensão tão humana. Será que estamos mesmo a assistir à Morte do Artista?
A Seita fala-nos sobre uma das mais antigas ferramentas de controlo populacional: as seitas. De um ponto de vista histórico, o exemplo mais vincado reside nas ancestrais ordens religiosas, que utilizam figuras de poder superior como veículo para a implementação de regras sociais, controlo comportamental e exercício de poder em massa.
Nos dias de hoje, as seitas assumem uma figura bem mais camuflada. Numa sociedade onde a idolatração, a regra e o bem parecer imperam, os grupos de poder servem-se disso mesmo para exercer o seu controlo de forma subtil e eficaz.
Num constante assédio para seguir o “bom exemplo”, caso optemos pela diferença somos confrontados imediatamente pela crítica, o julgamento e a imposição do medo! Um claro exemplo disto está no atrito que os artistas enfrentam quando tentam evitar serem arrastados para o caudal da profissão convencional.
“A Seita” pretende ser um estímulo à análise minuciosa das formas de poder que nos rodeiam e do seu impacto individual e social, mas também um grito de resistência à pressão por elas aplicadas.
“Em terra de cegos, quem tem olho é rei”. O provérbio popular que dá nome e corpo ao segundo single dos mutu representa sucintamente a mensagem deste tema: numa sociedade cada vez mais seccionada por classes, o “peixe graúdo come o miúdo”.
O sonho da conquista da liberdade pelo sucesso financeiro leva o “peixe miúdo” pela corrente dos contratos laborais cada vez mais exigentes, tanto a nível de carga horária como mental e/ou física. Apresentamos, hoje, um nível de desgaste pós-laboral sem precedentes, que nos deixa inertes perante todas as outras dimensões da nossa existência: negligenciamos a família, amigos, passatempos e sonhos pela eterna busca do conforto financeiro, que tende a tardar ou a nunca chegar.
Encurralados nas leis do capital, procuramos refúgio nos nossos mundos virtuais, nos dispositivos, nas compras, nas coisas vazias que nunca nos chegam a preencher.
Os mutu convidam assim os ouvintes a questionar as suas rotinas, os seus hábitos, o seu actual desgaste e o real valor deste comportamento social muitas vezes impulsionado pelo efeito de manada e pela comparação.
A Corda é um toque para acordar da realidade. Um alarme que anda a ser adiado há demasiado tempo.
Num dia-a-dia tão mecanizado e denso, ficamos muitas vezes a sonhar acordados. É principalmente desde a revolução industrial que nos apresentamos como soldados na guerra da produtividade, onde somos carne para canhão. A falta de tempo e fôlego financeiro para parar, respirar e reflectir, deixa-nos muitas vezes num limbo de pensamentos sobre como seria a nossa vida a fazer algo diferente, que nos apaixonasse realmente. Dentro desta discreta mas eficaz pressão do sistema, andamos meios adormecidos, com baixa capacidade de reação, reinvenção e revolução.
Está na hora de acordar, de querer mais e de ser mais! Este tema pretende despertar o ouvinte do conforto do expectável, que nos consome rapidamente até perdermos de vez toda a energia que ainda nos resta.
A Ceifa retrata a desertificação dos meios rurais numa chamada de atenção para a morte das gentes e desaparecimento das tradições que configuram a nossa identidade colectiva.
Na primeira parte, as harmonias contemporâneas e ritmos cíclicos envolvem a melodia e letra tradicionais, numa representação do quotidiano urbano. Esta rotina intensa do dia a dia deixa em segundo plano questões existenciais e identitárias o que tem vindo a pronunciar cada vez mais essa desertificação cultural. A música tradicional “A cantiga da ceifa” é uma boa metáfora que representa o deslumbramento das novas gerações pela cidade e pelo consumo – “o rapaz que envisga o olho” deixa “o restolho” esquecido e abandonado.
A segunda parte da Ceifa, descreve o meio desertificado e seco, que encontramos quando voltamos às nossas origens, principalmente no interior. A morte impera sobre as pessoas, os costumes e as tradições que configuram a identidade de um povo. Percebemos então que há uma responsabilidade individual e colectiva neste abandono, abdicamos da nossa cultura em prol da ilusão da felicidade pelo dinheiro que o sonho citadino nos promete. O sentimento de “culpa alheia” alimenta este progressivo desaparecimento da nossa cultura tradicional.
Os mutu pretendem chamar à atenção para esta problemática, especialmente nas novas gerações, que perdem cada vez mais o contacto com as nossas origens e tradições.
Num ambiente pesado e sombrio, os mutu pretendem levar o ouvinte para uma viagem às profundezas da tristeza e do sofrimento. A relação com a morte e a perda sempre foi uma questão muito forte do existencialismo humano, e é interessante observar a forma como diferentes povos lidam com o término da nossa passagem por este mundo. Individualmente, a morte é vivida de forma muito distinta. O que acontece depois? A religião traz umas respostas, a ciência outras. Os crentes descrêem, os não-crentes pedem ajuda divina. Neste confronto com o sofrimento, voltamos à terra, questionamos tudo, até a nossa própria existência.
Se a este tema o ouvinte juntar memórias de alguém próximo que já não está entre nós, será sentido tudo o que os mutu têm para dizer.
O último tema do primeiro álbum dos mutu é como que um invólucro dos temas abordados em todo o disco. Assistimos hoje a um desbaste colectivo da criatividade pela pressão crescente das rotinas quotidianas que é facilitado pelo fluxo migratório para os grandes centros urbanos. Deixamos secar as nossas fontes criativas, as nossas origens, sacrificamos os nossos sonhos e projectos no frenético ritmo a que vivemos sob julgamento da opinião alheia e do pré-estabelecido caminho do sucesso. Abdicamos muitas vezes de quem somos e do que realmente queremos, neste desconfortável conforto. O tema configura um toque de despertar introspectivo para estas questões individuais e sociais que se torna cada vez mais urgentes.
Na actual era da tecnologia existem já formas de inteligência artificial com capacidade criativa. Algo bastante irónico, já que enquanto as máquinas ganham capacidade artística, nós definhamos cada vez mais esta característica tão humana. Será que estamos mesmo a assistir literalmente à “Morte do Artista”?
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)