Paes

Blue Tree Salvador
2021 | Abismmo | Indie

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Apelidado carinhosamente por BTS, o álbum nasceu numa atmosfera solitária, mas conta com diversas participações: de MURAIS a ÀIYÉ, Dinho e Ynaiã (Boogarins) e outros. Embarquem no mundo de Blue Tree Salvador, o quarto disco de Paes.

#1 Blue Tree Salvador (Paes)

É uma das primeiras que criei, não à toa, dá nome ao disco e é também a faixa de abertura. Analisando agora, com um certo distanciamento, percebo que a música sintetiza muito bem a ideia do álbum em diversos aspectos. No que se refere à musicalidade, apresenta a sonoridade geral da obra. Guitarras com bastante Reverb e Delay, baixo bastante presente, com ataque, agudo e melódico, como sempre gostei de fazer. Mas aqui encontro novos caminhos. Quando imaginei a bateria, a primeira pessoa que me veio a mente foi o Ynaiã Benthrol. Sempre adorei os arranjos dele para os Boogarins e esta faixa precisava de algo firme, marcado e com engrenagens, como se fosse mesmo uma máquina. Ele entendeu todas as intenções, dinâmicas e momentos. Para a parte do meio, convidei o Raphael Vaz, também dos Boogarins para gravar uns Moogs e o resultado foi simplesmente além da minha maior expectativa. Esses caras são simplesmente geniais. Eu estava certo. Comecei pela harmonia no violão, “catando” os acordes nos pensamentos. Depois de tocar essa sequência inicial por dias, surgiu naturalmente uma melodia de voz. A letra foi composta na hora de gravar a voz, no improviso. Ela já estava pronta lá aqui dentro. No aspecto literal, a música também revela a ideia central do todo. É uma pessoa falando para outra, que está desacordada, sonhando, em coma ou em algum estado de choque e diz-lhe que: “Você não sabe o que aconteceu. Tudo que era seu, não existe mais. E a saudade do que ficou para trás”. É sobre esta grande mudança em nossa sociedade, nossos comportamentos. Já não somos os mesmos de antes. Já não temos as mesmas coisas. Fala de saudade obviamente. Do mundo anterior. Cria uma imagem fantasmagórica, sombria, quando falo: “…Hold in his arms and stay where we met. Floating ghosts on the beach and I see me there. Who will say these words to this Blue Tree Salvador? Open your eyes…”. As influências musicais são provavelmente das bandas new psicodélicas da Oceania, que estão sempre nas minhas playlists e ao mesmo tempo da psicodelia pernambucana e mineira no Brasil dos anos 70.

#2 A tua presença (Paes/Dinho)

Esta canção foi a primeira que compus no apartamento. Pensei logo no Dinho (Boogarins), pois achei a cara dele. Começou com esta imagem da praia em minha cabeça. Lembrei que fazia muito tempo que não ia ao mar. Desde que saíra do Recife para ir morar ali, em São Paulo. A base é um mantra no violão, apenas dois acordes. É uma levada praieira, me vem Caetano, Morais Moreira. Mandei a “demo” para o Dinho e ele quis escrever umas partes e cantar junto. Em seguida compus a linha de baixo, que define a música da forma que ela é. Ele é o fio condutor de todos os elementos. A partir disso, a Larissa Conforto criou uma trilha de percussões no Ableton Live, seguindo esse balanço das ondas que as cordas traziam. O resultado é uma linda parede percussiva, que me remete a Fagner, Buena Vista Social Clube e toda sorte de referências nos ritmos latinos. A Lari também canta lindamente com esses vocais que lembram as linhas do Quarteto em Cy com Björk no meio. A letra fala de saudade, de união e reflete sobre o mundo, sobre a humanidade. É um lamento: “Que vontade de ir à praia. Que saudade de estrada ser casa. Mas não podemos sair. Não podemos sentir os elos, a tua presença. Dar seus abraços, faíscas de afeto. Daqui eu traço vida e poema”. Ou quando falo “…Num mundo estranho, sem rumo tão cedo, futuro ou mistério”. Mas também fala de esperança e afeto: “…Reinventar o ir e vir, te ter aqui aceso…”. Fala de ressignificar o medo, a incerteza e se concentrar no presente, nos seus, na troca para fortalecer os sonhos: “…Não se assustar ao descobrir o que há de novo, o que há por dentro. Sabe onde é? Sabe o que é?”.

#3 Amaciante (Paes/Carabobina)

Uma das duas únicas faixas eletrônicas do disco. Comecei essa música com a base do piano elétrico, estes acordes que aparecem de fundo. Lembrei da dupla Carabonina, formada por Raphael Vaz (Boogarins) e Alejandra Luciani. Estavam prestes a lançar o disco de estreia e já a um tempo sonhava em fazer algo junto. Receberam o áudio e rapidamente gravaram beat, synths e umas ideias de vocais. Mandaram de volta. Eu fiquei muito feliz com o andamento e no mesmo dia compus a letra e gravei a voz guia. Enviei novamente. Ajustaram a letra e criaram um maravilhoso refrão. Tive a brilhante ideia de chamar o Hélio Morais (Linda Martini / Paus), amigo nosso em comum de Lisboa. No disco de estreia do Hélio, intitulado “Murais”, há uma versão para “Espelhoz”, minha e de Benke Ferraz e a sonoridade dele é nessa mesma praia. Minha voz, a de Alejandra e do Hélio combinadas fizeram dessa música uma das minhas preferidas em termos de sonoridade e originalidade. Ela é melancólica, reflexiva mas ao mesmo tempo “para frente”. A letra eu fiz para Raquel Zandoná, com quem vivi em São Paulo durante quase um ano em meio ao isolamento. Com quem criei toda a identidade visual do álbum, com que fiz o videoclipe de uma faixa e desenvolvi o conceito por trás de tudo. Fala de saudade e de estarmos juntos, mesmo a distância. É bem simbólico, agora estando em Portugal, faz todo sentido. Essa faixa tem uma atmosfera muito onírica, talvez pelos vocais distantes e etéreos e os sintetizadores do FelFel. Os sotaques latino da Alejandracom sua voz doce e o sotaque português PT do Hélio para mim é o grande diferencial.

#4 Hotel Bali (Paes)

A canção discorre sobre um amor genuíno, explica o artista natural de Recife: “Nesta música eu falo de um amor imenso. Os anos passam e você percebe o significado de um amor verdadeiro. Não me refiro ao amor romântico ideal, perfeito, intocável. Falo de um amor que atravessa todas as provações que a vida pode te apresentar. Enfrenta anos, uma década de tempestades e acontecimentos diversos. Ressignifica a relação de formas inimagináveis“.

Além disso, ela reflete sobre a existência e o destino da humanidade: “Estaremos juntos independente da forma, da matéria. Na presença da saudade, na memória do afeto. Quando canto:  ´…mesmo sem saber o mundo que iremos ver. Se a Terra há de aguentar. Se eles hão de chegar para nos buscar ou se ninguém vai perceber e nós vamos morrer ou nos transformar em pó estelar. Vou estar com você´. Essa é a mensagem central da canção, a união e o afeto. Também representa o desespero da raça humana de especular terras em outros mundos, já que este não lhe serve mais. Nos coloca no lugar dos pequeninos diante do universo. É também a aceitação da morte, do fim, como um novo princípio, um recomeço”. O Hotel Bali simboliza a ideia de trânsito, de viagem, passagem, assim como o nome do álbum. Faz sentido se eu olhar para minha trajetória de sete turnês pelo Brasil, Argentina e as mudanças para São Paulo e Lisboa. A estrada sempre me fez casa”, completa.

#5 Ideias ideais (Paes)

Compus esta canção para as amigas e amigos espalhados por Recife, São Paulo, Lisboa e por outros cantos desse mundo. Queria encontras eles bem, vivos e com esperança. É um hino aos sonhos, aos encontros, à amizade e a resistência através da solidariedade e do amor. Quando canto: “Me perder nos sonhos, esse labirinto de ideias ideais. Quero construir uma casa em cada canto que pousar. Encontrar vocês todos bem e àqueles que não entendem o que é amar sem igualdade, sinto muito. Nós vamos passar…”, sintetiza o momento da minha mudança de São Paulo para Lisboa. Não deixar de acreditar nos nossos sonhos, mesmo em situações extremamente desesperadoras como a que estamos vivendo. Fala de viver o presente e dar valor as relações e as pessoas que nos cercam e cuidam sempre. Devo boa parte desta música às conversas com uma amiga que me recebeu de braços abertos em Portugal, bem antes de sequer chegar, a Jéssica Soveral.

#6 Pedais (Paes)

Compus esta para minha amiga Larissa Conforto, a.k.a Àyé. Na verdade, eu psicografei. É como se a música fosse dela e eu, apenas uma forma que ela encontrou inconscientemente de fazê-la. No início da nossa amizade, ainda em São Paulo, passamos ambos por um momento difícil, de várias mudanças. Mudança de cidade, mudança de planos, num mar de ansiedade e caos. Numa certa noite eu peguei a guitarra e comecei a procurar notas para entender o que se passava dentro e o que se passava com ela. Eu queria lhe dizer algo de bom, qualquer coisa que nos desse mais esperança e confiança. Lembrei que ela havia me ligado uma vez, quando ainda morava em Lisboa e eu no Brasil, logo depois de levar uma queda nas ladeiras e arrebentado o joelho, deixado cair os pedais de efeito e ralado as mãos. Me contou que uns rapazes angolanos haviam a ajudado a se levantar. Choramos de rir. Essas e outras histórias ficaram ressoando na minha cabeça por uns meses e misturado com o desejo de lhe dizer que estava ali presente, fiz uma analogia com os pedais (eletrônicos e metaforicamente, o de uma bicicleta) e a queda para nos ajudar a superar aquele momento. Aprender com os erros, saber ouvir e sentir cada passo, seja para frente ou para trás. Letra e melodia surgiram juntas. Em trinta minutos eu gravei no celular e mandei para. Rimos de chorar. Nessas horas comprovo que os encontros, aqueles que duram uma vida, não acontecem por acaso e as relações de trocas gigantes tem um poder tremendo para revolucionar tudo que quisermos. Comecei a gravar com a guitarra “aquática”, cheia de reverb, delay e chorus. Depois pus o baixo, órgão analógico e vozes. Precisava de um beat tipo “drum machine” e logo pensei na nossa amiga em comum, a linda e genial Desireé Marantes. Ela enviou um beat analógico, marcado e em loop como eu imaginei, e também mandou uns teclados com melodias bonitinhas. No início, se observarem, há um sample que fiz do tape deck abrindo e fechando, como se fosse uma fita cassete tocando. É talvez a faixa mais low-fi do álbum e tem mesmo essa cara de demo-tape.

#7 Anticorpo (Paes)

A faixa mais brasileira do álbum, a minha bossa nossa torta. Fiz esta canção num só giro, letra e música. Compus para uma grande amiga chamada Bruna Valenttini. Entre mensagens e áudios a distância, ela em Barcelona (depois no Rio Grande do Sul) e eu em São Paulo, trocamos experiências, bolamos aventuras para quando tudo isto passasse, ou ao menos mudasse. Numa tarde, no sofá da sala, comecei a dedilhar a harmonia num só movimento e a letra foi surgindo junto com o sentimento que a música evoca, do um abraço morno e sossegado. Corri para o quarto registrar. Enquanto gravava, percebi que poderia ficar ainda melhor se houvesse uma outra voz dobrando a letra inteira, junto com a minha. Foi aí que pensei na única possibilidade que existia, Julles. Carioca radicada em Recife, Julles é uma das artistas mais legais que vi surgir nos últimos anos. Ela acaba de lançar seu primeiro EP, chamado “Interior” e é simplesmente lindo. Eu fico muito feliz toda vez que ouço essa faixa do álbum. É mesmo um belo respiro em meio ao fluxo de sentimentos dentro do álbum. Divide ele ao meio. A cada audição me sinto calmo, levado por essa brisa. Só vozes e violão. No início coloquei um sample que gravei da escada rolante “cantando” no metrô da República, em São Paulo. Certeza, obviamente que a maior influência para esta canção é João Gilberto, artista que ouvi muito vida e sobretudo durante a gravação, assim como a pegada low-fi do violão de aço muito presente nas canções do Daniel Johston, outro que ouvi bastante no isolamento.

#8 Sem essa (Jards Macalé)

Primeira música de uma grande ídolo que faço uma versão registrada. Neste caso, um dos meus maiores ídolos, Jards Macalé. Eu canto as músicas dele desde 2010 nos meus shows. O encontrei em duas situações engraçadas, ambas no sítio histórico de Olinda – PE, durante a MIMO – Mostra Internacional de Música de Olinda de 2013. A primeira foi no Mercado da Ribeira. Estávamos todos lá para ver “A farra do circo” de Roberto Berliner. Lembro que esperava o filme conversando com Irandhir Santos e Camila, minha companheira a época. A certa altura fui ao banheiro. Entro e vejo um homem urinando em pé. Quando me dou por mim era Macao. Eu fiquei sem reação e numa fração de segundo pensei se falava ou não com ele, se cantava alguma música, pois a situação era, digamos, constrangedora. Obviamente soaria muito esquisito e invasivo. Decidi não falar e assim foi o meu primeiro encontro com ele, dividindo o banheiro em silêncio. A segunda foi no mesmo festival, após o concerto dele na Praça do Carmo. Passei 1h arrodeando as saídas do palco, com uma dúzia de pessoas tentando a mesma sorte de falar com o homem. Finalmente consegui chamar a atenção de sua companheira e produtora, Rejane, e ela me levou até ele para trocarmos discos com nossos respectivos autógrafos. Mas antes que isso ocorresse, Jards passa correndo dizendo que não queria mais falar com ninguém, jogou até o casaco no chão, numa cena digna de filme. Mas ele me olhou com o LP de 1972 na mão e voltou. Conversamos um pouco e parti, feliz da vida. No isolamento, relembrando esta canção, decidi gravar numa atmosfera diferente do que sempre fiz, mais eletrônica, só com beat, teclas e vozes, numa roupagem pop low-fi. Enviei pra Rejane e Macao, eles gostaram e aprovaram. Me sinto muito honrado e agradecido por isso. A vida é uma life.

#9 Spider sparkle (Al Jamal)

Eu ouvi esta música pela primeira vez em 2018, quando conheci Al Jamal em Olinda – PE. Eu adorei desde o primeiro momento sua obra, achei genial. Ele havia me contado a história por trás da música e fiquei fascinado pela imagem que ela criava. A letra fala de uma “trip” que ele teve na floresta de Redwood, na Califórnia, onde o sol penetrava nos galhos de árvores gigantes e transformavam as teias de aranha em fios luminosos, como fogo. Fogo que tomou a casa dele dias antes. Quando fala: “I don’t believe in the sky when it crumbles that way. The tigress comes crashing like light on a lash in the sun, is it raining today? I can’t believe that a spiderweb sparkles that way”. A data do incêndio dava nome a faixa inicialmente, mas com minha versão, numa nova abordagem e interpretação, achei que “ela pedia” para ser chamada de “Spider sparkle”. Eu gravei inicialmente o violão de aço, depois o baixo e as vozes. Mandei para ele colocar a voz aguda dobrando toda a letra comigo, além de um sintetizador para dar ambiência. O resultado foi surpreendente, conseguimos de fato criar a atmosfera dos eventos através do som. Ela carrega muita emoção e é uma das mais fortes do disco na minha opinião. Para finalizar, convidei meu amigo Gil Mello (Mudo) para gravar umas guitarras e inserir um sample de fogo para contextualizar e criar uma textura extra. Ele fez o que eu imaginava e foi muito mais além. Registrou belos acordes e riffs em “reverse”, com bastante delay e reverb, deixando o mood ainda mais etéreo. É outro belíssimo lamento. As influências para esta faixa foram Sufjan Stevens, Devendra Banhart, Beabadoobee, Grizzly Bear e o próprio material folk do Al Jamal, artistas que escutei muito durante o isolamento.

#10 Shame (Paes)

Eu vivi um ano e meio em São Paulo. As primeiras semanas foram bem difíceis a adaptação. Eu cheguei no inverno de 2019. Para mim, um pernambucano, fazia frio. Seis graus na madrugada. Mas eu tinha abrigo e agasalhos, encima de todos os meus privilégios e com direitos assistidos. Imagina quem não tem nada disso. Eu via sempre muita gente na rua do Recife, abandonadas pelos poderes e marginalizadas pela sociedade. Mas ali, naquela imensidão de cidade, naquela proporção e clima, bateu pesado em mim. Cada vez mais passei a ver gente na rua. A pandemia, intensificada pelo descaso e plano do “desgoverno” de situação, só agravou esse abismo. Essa faixa é um grito, “spoken word” em lamento. “I see shadows on the street. I see forgotten wishes. I see hunger, thirst and fear. I see empty buildings. I see the cold squirm and moa non the sidewalk. I see the lost son and contained cry. From those who will never be heard. From those who have nothing to loose”. As influências foram Sonic Youth, PJ Harvey e Television. Gravei várias camadas de guitarras “lead” e “solo”, um baixo agudo e repetitivo e convidei o Hélio Morais para gravar uma bateria bem “limitada” e certeira, apenas utilizando os tambores, caixa e bumbo. Ele entendeu perfeitamente a ideia e registrou o coração da faixa. O fim do álbum é o erro, assumir a falha sempre, destruir para reconstruir tudo de novo.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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