Slowburner

Life Happens in the Interim
2024 | Edição de autor | Alternativo

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Às vezes é preciso mudar os móveis do lugar. Desarrumar. Esqueçamos por um momento as prateleiras ordenadas da música. Pop, rock, clássica ou electrónica. Pensemos em música sem classificações, como a vida, orgânica, imprevisível e misteriosa, aceitando que não conseguimos decifrar tudo, a partir de uma música instrumental de sensibilidade clássica, onde o piano é omnipresente, bem como os ambientes e uma consciência que parece pop.

Em “Life Happens in the Interim“, Élvio Rodrigues renova energias em nove temas de notas ou cascatas de piano, sons concretos do quotidiano (o mar, as ruas, as crianças), ambientes e ocasionais motivos percussivos. Um território híbrido, seu. Mas ao qual se pode tentar dar uma família, ou várias famílias, porque não existe uma nomenclatura consensual para os nomear. Neoclássicos, pós-clássicos, clássicos modernos, são algumas dessas denominações que foram sendo arremessadas para o espaço público nos últimos anos, no fim de contas, refletindo a dificuldade em situar a música de Nils Frahm, Ólafur Arnalds ou Max Ritcher, em fórmulas estáveis.

#1 Spark of light

A ‘Spark of light’ é a primeira música do disco, mas curiosamente foi uma das últimas a ser composta. Lembro-me de quando comecei a improvisar a melodia de piano por cima dos sons atmosféricos iniciais, ter sentido que de alguma forma o puzzle que foi a composição deste disco começar a fazer sentido. Para mim foi ultra claro que esta música seria a primeira do disco. Deu-me a sensação de que algo estava a começar. Foi como uma epifania. De repente tornou-se tudo claro. Eu sabia para onde queria ir e o que queria fazer. Como curiosidade, deixo aqui uma das primeiras versões da intro desta música. A base da melodia do piano não mudou muito, mas houve algumas partes que foram trabalhadas até chegar à versão final que está no disco.

#2 Begin anew

Aproveitando o embalo da música anterior, a ‘Begin anew’ é um efectivar desse tal início. Esta foi uma das músicas mais difíceis de acertar do ponto de vista de performance e produção. Não foi a primeira vez que me deparei com esta situação e imagino que não seja a última. Há músicas que são mais baseadas em “loops” e que acabam por estar bastante alinhadas com o metrónomo. E depois há músicas como esta que parecem pedir mais liberdade, mais espaço para respirar. Não foi fácil encontrar o equilíbrio certo para esta música e conseguir a performance desejada. No fim de tudo acho que esta abordagem mais orgânica resultou bem para esta música.

#3 All the possibilities of the universe

O processo de composição da ‘All the possibilities of the universe’ foi possivelmente um dos mais prazerosos do disco. Tudo começou com uma experiência. Estava a brincar com o OP-1 (sintetizador da Teenage Engineering) no modo “Tombola”, em que temos literalmente a representação de uma tômbola – cada nota tocada faz aparecer uma bola dentro da tômbola, sendo que a bola emite o som respectivo a essa nota quando esta toca na parede da tômbola. Existem vários parâmetros que nos permitem afectar a maneira como as bolas se movimentam e consequentemente o momento em que as bolas batem nas paredes e emitem som. Podemos controlar a massa das bolas, a gravidade, a velocidade de rotação da tômbola e o formato da tômbola. Parece bastante aleatório. E é. E de certa forma foi isso que me seduziu nesta experiência – a falta de controlo. Enquanto tinha a tômbola em rotação, decidi sentar-me ao piano e experimentar tocar algo por cima daquela nuvem de notas. Não demorei muito a perceber que estava no caminho certo. É aquele tipo de situação que não acontece assim com tanta frequência, por isso quando acontece sabemos que é especial e que temos de dar continuidade. O conceito da música começou logo a desenhar-se nessa altura também. Comecei a imaginar que a nuvem de notas representava de alguma forma o universo – complexo, harmonioso e com padrões por vezes pouco óbvios. Por outro lado, o riff de piano, representa uma sequência muito bem definida que de alguma forma se mistura bem com a aleatoriedade da nuvem de sons. Esta música tem muitos “acidentes felizes” na maneira como as várias notas da nuvem de sons interagem entre si, mas também existiu muito trabalho intencional de processamento de som e de curadoria de quais partes usar / evidenciar. Acho que é este equilíbrio que faz esta música ser o que é.

#4 Reality

Esta música foi uma daquelas músicas que teve uma longa vida até estar finalizada. A primeira parte da música é bastante linear, na medida em que, a cada repetição, temos um novo layer a ser adicionado. Não há nada de extraordinário a acontecer, mas sinto que a maneira como os vários elementos interagem entre si é o que torna a música interessante. No entanto, não foi fácil perceber para onde poderia evoluir depois de adicionadas todas as camadas. Este foi mais um daqueles “acidentes felizes” em que de alguma forma as peças do puzzle começaram a alinhar-se e tudo começou a fazer mais sentido quando comecei a explorar a ideia de suceder a “Reality” com a música “Daydreaming”. Não se trata apenas da decisão do alinhamento, mas também da maneira como as duas músicas estão unidas pela transição que é feita. Fiquei particularmente feliz com o facto de ter usado uma gravação de campo de uma praia (que inclui o som das ondas, pessoas, etc) para fazer esta ligação. Uma das situações onde consistentemente permito que a minha mente divague e que me leve a um estado de “Daydreaming” é precisamente na praia após um mergulho no mar. Daí que tenha usado este elemento como o elemento conector entre a “realidade” e a ideia de “sonhar acordado”.

#5 Daydreaming

Já tinha composto esta música há bastante tempo. Inclusive toquei-a várias vezes ao vivo em 2019 nos concertos de apresentação da colectânea ‘Sunday mornings are for piano’. Sempre tive algum receio de gravá-la. Sempre senti que não a conseguia tocar exactamente como queria, e tinha receio de me comprometer com uma versão inferior. Por isso, em vez de gravá-la, tocava-a vezes sem conta. Gravar uma versão “final” não foi fácil, mas no fim de tudo, acabei por estabilizar num take que me pareceu captar a essência da música. Sinto também que o som das ondas, ora mais perto ora mais longe, deram outra dimensão à música e ajudam a dar outro enquadramento a este momento de reflexão / divagação.

#6 Stuck in a loop

Esta é possivelmente uma das músicas mais antigas de Slowburner. Ao longo dos anos tentei gravá-la de várias formas e feitios, mas nunca senti que tivesse feito justiça à música. A versão do disco acabou por ter mais elementos para além do piano, apesar das primeiras versões que mencionei terem apenas o piano como elemento principal. É possível que no futuro ainda grave uma versão desta música mais fiel a essa versão inicial, só com piano. É uma música bastante simples com um simbolismo bastante importante para o disco, uma vez que acaba por representar o fim de um ciclo e ser um ponto de inflexão para o que vem depois.

#7 Finding your rhythm

Esta foi uma das primeiras músicas do disco onde senti necessidade de explorar elementos rítmicos. O nome da música acaba por aludir a isto, sendo que é apenas uma das várias maneiras como podemos interpretar o nome da música. Como a minha música é instrumental tento que o conceito da música possa ser interpretado de várias formas, na esperança que isso permita aos ouvintes encontrarem diversas maneiras de se relacionarem com a música. No contexto do disco, esta música representa um ponto de viragem em que o protagonista parte na procura de si próprio ao seu ritmo natural. O ritmo dos primeiros versos (início aos 1:11) pretende ilustrar um pouco esta procura por um ritmo. Deixo aqui um vídeo que partilhei no instagram em Abril de 2020 que mostra uma versão inicial da música. A partir deste momento foi mais uma questão de trabalhar na estrutura da música para fazê-la chegar ao resultado final presente no disco. Esta é também a primeira música de Slowburner com um solo de piano 🙂

#8 Improvised life

Esta música é mais um daqueles casos raros, de uma música que surge do nada e que parece que se compõe a si própria sem grande esforço. Às vezes questiono-me o que acontece a estas músicas, se naquele dia em particular não me sentar ao piano para tocar? Gosto de pensar que esta música encontraria sempre maneira de ser materializada de uma forma ou de outra. Mas não sei se é assim na realidade (não tenho maneira de saber). De qualquer forma, este é um daqueles casos em que me sentei ao piano, e a música surgiu de um simples improviso que gravei. Depois de algumas edições, fiz vários duplicados da faixa de piano e apliquei vários tipos de processamento a cada uma das faixas duplicadas. O resultado é aquele que podem ouvir na música. Esta música inspirou também a escrita de um texto que me ajudou a reflectir sobre o significado desta música e do próprio disco (que estava ainda em composição na altura). Este texto é parte integrante do vinil, sendo que também está disponível para leitura aqui. Esta música para mim é um lembrete de como é importante deixarmo-nos levar e estarmos abertos às possibilidades que o improviso pode trazer. Seja na música ou na vida. Algo com o qual tenho muito para aprender do lado da vida no geral.

#9 Wildcard

Sinto que esta é uma das músicas mais completas do álbum no sentido em que tem uma estrutura bastante completa e natural. As minhas músicas acabam por não seguir muito as estruturas tradicionais verso-refrão, na maior parte das vezes porque sinto que as minhas músicas pedem uma coisa diferente. Mas gosto do facto desta música ter uma estrutura mais tradicional nesse sentido, o que traz alguma repetição, e a oportunidade de adicionar novos elementos progressivamente, a cada repetição. Acho que ajuda a trazer alguma variedade ao disco. Do ponto de vista conceptual, é também uma música muito importante. É uma música que traz mais perguntas do que respostas. Não deixamos de estar de volta ao início, onde existem escolhas para fazer. Não fazer nenhuma escolha é também em si uma escolha. A mensagem importante a retirar daqui é que a cada momento temos sempre a opção de fazer escolhas que estão mais alinhadas com quem queremos ser. Não precisamos de uma autorização especial para fazer essas escolhas. Está ao alcance de todos nós. Temos só de reconhecer que está nas nossas mãos.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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