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Imaginem um triciclo no alto de uma duna, a ver o mar, a sentir o sol quente nas rodas pintalgadas de areia, com uma certa comichão no volante por causa da humidade salgada, e a pensar: “Apetece-me apanhar o próximo barco para Marte e desviá-lo até ao centro do Sol”. É mais ou menos isto que os Tricycles são. Uma coisa vagamente improvável, um conjunto de kidadults de rumo duvidoso mas com histórias para contar, cheias de pessoas que poderiam existir. E de facto existem, em calmas músicas prontas a explodir, lentamente, a mil à hora, com suavidade, ou em rugidos de guitarras zangadas e pianos falsamente corteses, de rudes baixos a conversar com educadas baterias.
É uma canção sobre equívocos, sobre o passar do tempo, a ironia de não nos apercebermos senão tarde demais (o que é totalmente irrelevante, porque não podemos fazer absolutamente nada para o impedir). Parece-nos que é sobre isso. Mas, na verdade, talvez seja também sobre outras coisas, e esperamos mesmo que seja muitas coisas diferentes para cada um que a ouvir. Foi das primeiras que fizémos e é das poucas em usamos o sintetizador do princípio ao fim. O esqueleto da música, e uma boa parte da carne, vem da programação do João no Triton. É uma música crua, onde a eletrónica está presente, mas sobretudo para dialogar com a guitarra sincopada do Afonso e o baixo e bateria marcados do Edgar e do Sérgio. Escolhemos esta para primeiro single por representar bem o que somos. Convictamente rock. Convictamente pop. Não temos qualquer pudor em ser híbridos, múltiplos, gajos porreiros e putos desordeiros.
Convém, sobretudo, dizer que não é para vegetarianos. Foi interessante o processo de pré-produção e gravação no estúdio, com algumas alterações à estrutura inicial que resultaram de sugestões do Nelson Carvalho. É uma música simples, ligeira, falsamente alegre, sobre um assunto falsamente risível.
Foi daquelas em que mais overdubs fizémos no estúdio, de guitarras, de vozes, mas de forma a não mascararem o essencial. Pormenores que só os mais atentos notarão e que, esperamos, os outros sentirão. Podemos tocá-la ao vivo sem nada disso e manter totalmente o espírito e a sonoridade da música, mas parece-nos que conseguimos alcançar alguma subtileza e elegância que nos agrada na versão gravada. E, depois, o final forte, num crescendo um pouco estranho de guitarras e back vocals.
Uma viagem bem disposta de consequências imprevisíveis (ou não). Algumas referências musicais óbvias. Uma música mais pop que rock, com o Afonso a cantar. E um final pelo qual valia a pena lutar.
Gostamos muito da liberdade de poder dizer banalidades em qualquer língua, mas não nos escondemos atrás da lingua inglesa para o fazer. Ou melhor, quando queremos escrever banalidades, escrevemos. É um direito que não dispensamos. Mas gostamos demasiado da capacidade que as palavras têm para nos humanizarem, nos indignarem, para partilharem a nossa essência, os nossos medos, as nossas misérias, o nosso nojo e o nosso riso, para abdicarmos de as usar como veículo da nossa humanidade.
Esta começou (e começa) com um riff de guitarra do Afonso e depois continuou num trajecto encontrado pelos quatro. Essa procura, a descoberta do caminho, o inesperado a acontecer, saído das nossas mãos e das nossas cabeças, são tudo razões que nos levam à sala de ensaios como se ainda fossemos adolescentes. Não sabemos muito bem onde é que esta música se encaixa e não queremos saber. Sabemos que gostamos de a tocar, da energia que liberta. Não tem uma estrutura muito linear e isso também nos agrada. Mesmo que, possivelmente, afaste os mais impacientes.
Um panfleto despudorado. Um “foda-se, isto não devia ser assim”. Há algo de profundamente errado na forma largamente silenciosa e acrítica como aceitamos o que está profundamente errado no mundo, na sociedade em geral, a desproporção quase pornográfica na qualidade e nível de vida. Sabemos que somos todos marionetas mas por vezes podemos tentar quebrar os fios, ou, pelo menos, chamar a atenção para que outros, mais corajosos ou mais loucos, o tentem fazer. Em contraponto, a música é muito pop, muito imediata. Fizémo-la rapidamente, como se já estivesse à nossa espera e tivesse de ser assim. Sabemos, claro, que nenhum hino é humilde.
Há duas músicas ao piano a que chamámos “Phone call”. São ambas sobre a falta de comunicação, sobre o desencontro, sobre o isolamento, sobre a perda e sobre como aquilo que faz sentido em determinada altura pode tornar-se um absurdo ou um vazio noutra. Esta foi a que ficou no disco. O piano cria uma espécie de ilusão de espírito “clássico” a que se contrapõem os restantes instrumentos, em especial a guitarra. O choque entre eles é boa parte da razão pela qual esta canção faz sentido para nós.
Feita com cuidado e suavidade, para conter a hemorragia de estarmos cá, a respirar e a cometer erros.
Auto-censurámos o título. Era demasiado óbvio. A letra não é meiga, tem bolinha, não por dizer asneiras (até é bastante bem educada), mas a personagem que nela habita é tudo menos amável. Vítima-carrasco. Baseia-se numa história real e não é muito difícil adivinhar qual. Aqui não há discrepâncias entre a música e a letra. Tudo é cru. Estão lá todo o ódio, toda a raiva, toda a solidão, toda a morte absurda, de pernas abertas, em cada pancada da bateria, em cada nota repetitiva da guitarra acústica, em cada grave do baixo, em todos os insultos da guitarra elétrica. C as in grade, C as in key, C as in…..
Há muitas canções de amor, mas não são nada fáceis de escrever com a dignidade que o amor merece. Então, escrevemos uma canção de amor-ódio. Como não gostamos de coisas anémicas, pusemos imenso amor-ódio nela, assim mesmo para enjoar, desde a letra à música. Para compensar, gostávamos que as pessoas a amassem perdidamente. Pelo menos as certas.
É a faixa extra do disco, escondida bem à vista de todos. Uma boa forma de terminar, por várias razões. Porque é uma canção de amor com muita areia nos pés. Porque tem uma nostalgia muito própria, daquelas que marcam o fim e, por vezes, o príncipio das coisas que importam. Porque, tal como o “Into the sun”, é o Afonso que canta em vez do João. Porque é, de certa forma, uma peça arqueológica, reconstrói o caminho dos Tricycles… tudo começou com o João e o Afonso num formato quase acústico, ainda antes do Edgar e do Sérgio se juntarem. Esta música é, também, uma memória disso. Quase deu nome ao álbum.
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)