Luciano Mello & Orchestra Falsa

Vida Portátil
2021 | Edição de Autor | Electrónica, Rock

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Vida Portátil, lançado no dia 19 de Novembro trata de discutir como o indivíduo contemporâneo vive, ou sobrevive, imerso nos sinais e excessivas informações a que nos mergulham nas novas tecnologias.

E o álbum trata dessas mazelas com destreza, estranheza, bom humor e umas quantas interrogações. É um álbum feito para pensar, para desacomodar e como todo o trabalho musical bem pensado, tem som impecável e, portanto, o autor sugere que se ouça de fones, de bons fones.

#1 Luneta (Patrick Tedesco)

Este é o texto que abre o álbum e, pra mim, ele define o conceito do álbum, é uma espécie de epigrafe. Trata-se de uma pequena história infantil em que o narrador conta que um menino sonhava em “ter uma luneta para ver a lua bem de perto, bem de pertinho” e que quando esta criança ganhou a luneta, conta, fantasiosamente, que pode ver a Apolo 11 descer na lua, e pode ver inclusive a boca do astronauta Neil Armstrong mexer-se, mas que não pode ouvir o que o astronauta falou. Este texto, tanto para mim, quanto para o autor Patrick Tedesco, que participa falando 3 textos neste álbum, define os dias atuais em que passamos desesperados por obter objetos que nos façam ver e saber além, esses objetos, sempre ligados à vida eletrônica que levamos, nunca nos dão tudo o que esperamos e assim mergulhamos em fantasias, falseamos e perdemos as belezas que o olho nos dá, estamos sempre mergulhados em ecrans que nunca nos deixam ver ou ouvir o que é e o que há de facto. Esse texto fala exatamente disso: do que vemos sem saber se existe ou não, do que queremos ouvir, mas não conseguimos. Assim se define Vida Portátil, um mergulho naquilo que não podemos controlar.

#2 Gus Van Sant (Luciano Mello)

Gus Van Sant,  a canção, traz uma série de questionamentos e insiste na pergunta O que você vai ser quando crescer?

O Nome Gus Van Sant é uma homenagem a um de meus diretores preferidos do cinema e também um questionamento que muitos dos filmes deste diretor me trouxeram, entre eles, Paranoid Park, Elephant e Milk”. O diretor Gus Van Sant é meu gatilho para estabelecer uma canção repleta de perguntas que querem desacomodar, não estou perguntando para as crianças o que elas querem ser quando crescerem, mas aos adultos que já cresceram. Se o mundo está como está, certamente não está nas mãos de quem tenha crescido psiquicamente.

Vale dizer que a canção também é acompanhada por um clip (liric video), que, pra mim, mais parece uma obra de arte. Produzido por Patrick Tedesco e por mim, o clip traduz com um pouco  da atmosfera post-punk, ou post-rock, ou post-industrial que o álbum Vida Portátil cria. No clip, trechos de outra faixa do álbum, “Luneta”, o texto de Patrick Tedesco, foram inseridos a criar uma atmosfera anárquica absolutamente em acordo com a proposta desta canção.

#3 Vazio (Luciano Mello)

Esta canção é história de adultos e de adolescentes que começam a conhecer a vida. Já é o que o sujeito começa a ser logo que cresce, é coisa de quem crsceu, mas ainda pouco sabe. Parte de uma desventura verdadeira. Li no jornal que duas pessoas, uma no Rio de Janeiro, no Brasil e outra no Porto, em Portugal, se conheceram por internet, passaram meses conversando, depois uma delas foi ao encontro da outra e quando chegou no aeroporto, não encontrou a pessoa amada, por mais que houvesse todo o movimento do aeroporto, para aquela pessoa estava tudo vazio, todas redes sociais da pessoa amada haviam desaparecido. Isso diz muito dos nossos tempos atuais, tão crueis e impessoais. Ao final dessa faixa, que tem um clipe lindíssimo no Youtube (também produzido e dirigido pelo Patrick Tedesco), ainda soando o último acorde de piano ouve-se a voz de Patrick Tedesco falando um texto sobre o sol, achei que este vazio precisava de alguma luz.

#4 Só o sol (Patrick Tedesco)

É o segundo dos três textos de Patrick Tedesco que entram no álbum. É um texto muito pequeno, que quer dar uma pontinha de esperança, alguma luz para que está imerso no vazio, o vazio da canção Vazio. São tempos difíceis, estamos vazios, por isso:

“Como um raio
Como só
O sol”

Esse jogo de palavras tão simples e com tantas possibilidades de leitura.

#5 Num shopping (Luciano Mello)

Esta canção fala de alguém que está sentado num shopping esperando outro alguém, é quase como se fosse a cena seguinte à cena da constatação que a canção Vazio traz: de que tudo é solidão. Às vezes tenho a sensação de que estamos todos sentados num grande shopping assolados por imagens e desejos, anúncios, imposições de beleza, notícias falsas, promessas de um mundo melhor, um mundo baseado em gastos e compras, um shopping que só nos mostra as montras e as promessas, um grande shopping onde tudo queremos e nada temos. Acho mesmo que é isso: estamos todos sentados num shopping esperando por algo que jamais virá.

#6 Pausa portátil (Luciano Mello)

Esta canção é uma ode ao cinismo, é uma canção cínica que fala dos cínicos, daqueles que conseguem esquecer do mundo cruel que se forma dia após dia, essa canção mostra alguém alheio ao mundo, na segurança do lar. Mas, afinal, não é isso o que todos queremos? Talvez até seja, mas a pergunta é: É isso o que todos temos? Todos gozam dos mesmo direitos? Não. A resposta é fácil. Estamos em 2021 e seguimos vendo crimes de machismo, racismo, homofobia. Esta canção quer te tirar de dentro do teu mundo, é ela que dá o título ao álbum quando, depois de citar uma série de objetos inúteis sem os quais já não vivemos, fala

“Essa pausa total
Entre mim e o mundo
Entre mim e o mundo
A minha vida portátil”

#7 No mundo (Patrick Tedesco)

É o terceiro texto de Patrick Tedesco neste álbum, como os dois anteriores, também é dito por ele. Não à toa, este texto vem exatamente após Pausa Portátil e Fliperama. No Mundo narra uma cena simples: alguém sai do seu quarto, vai até a sala e se depara com “o mundo”, muito provavelmente “o mundo real”. Mesmo que não possamos definir o mundo real, este texto confirma meu desejo de que não se fique preso no interior de si mesmo, este texto convida a olhar o mundo. Não, eu não estou falando que se deva desrespeitar regras de lockdown, por exemplo, pelo contrário, sair de dentro de si é perceber a vida coletiva, as engrenagens que nos movem.

#8 Fliperama (Luiz Gonzaga Jr.)

Pensando nessas engrenagem que nos movem, naquilo que não sabemos sentir, mas em que estamos constantemente mergulhados, criei (minto que foi a Orchestra Falsa, mas ela é falsa e não existe) o arranjo desta canção de Gonzaguinha, um dos maiores compositores da música popular brasileira, um dos meus autores preferidos. Este arranjo funciona como uma engrenagem, em que tudo deve se encaixar sem se sobrepor. A canção Fliperama dá andamento à narrativa do álbum, é como se aquela pessoa que entrou em casa e mergulhou no conforto dos seus objetos (como narra Pausa Portátil), de súbito perdesse a quietude e lhe viessem todas os questionamentos que traz a canção Guz Van Sant, como se lhe viessem memórias de infância, como no texto Luneta, é como se essa pessoa tivesse vivido uma desilusão, assim como há em Vazio, como se esta pessoa, em algum momento deslumbrada por um mundo falso, como o que é narrado em Num Shopping, subitamente, do alto confortável da sua cadeira giratória percebesse o que se passa do lado de fora da sua janela. Nessa hora o tema de Vida portátil vem à tona com clareza:

“Da minha janela aberta para o mundo
eu vejo tudo eu vejo quase tudo
Vejo quase tudo confortavelmente
instalado na minha cadeira giratória
O giro da lente desfila todo avanço
e eficiência da tecnologia
Minha mente distraída ainda elogia
as maravilhosas máquinas manejadas por meninos”

diz Gonzaguinha na sua canção escrita em 1991. Esta canção, nunca oficialmente gravada pelo compositor, trata de temas absolutamente atuais e não teme ser explicitamente política, expondo ainda mais as intenções de Vida Portátil. Fliperama é um retrato, infelizmente, constante não só do Brasil, mas do mundo.

#9 História que não contei (Luciano Mello)

Esta, é pra mim a canção mais singela do álbum, e também uma das minhas canções mais singelas já feitas. Trata das frustrações, daquilo que não conseguimos ser e também daquilo que, tranquilamente, podemos ser. Trata das coisas que fizemos pelo prazer, sem tentar concorrências e trata das frustrações, daquilo que não chegamos a ser. É uma canção volátil, pode falar do que se quiser entender, que dá sentido a ela (e pra mim todas as canções devem ser assim) é o ouvinte, e não o autor. Se entendes o que queres, me ajudas a contar esta história que não contei. Conta ela pra mim.

#10 Cidade do Aqui Não (Luciano Mello)

Esta canção trata de botar algumas pessoas no seu devido lugar. Nenhum lugar é perfeito e, na maioria das vezes, em vez de se tentar melhorar o que se tem, as pessoas preferem imaginar que vivem num paraíso, nenhum lugar é perfeito e todo lugar pode ser melhor, e, melhorar um lugar não é torna-lo maior ou mais cheio de lojas e vendas, tornar um lugar melhor é torna-lo mais acessível a todos, mais fácil de viver, mais compreensivo, mais amoroso, mais respirável, penso que esta canção funciona, tanto no país que nasci, quanto no país que vivo. Vivemos zelosos e orgulhosos do lugar em que nascemos, porém, muitos, muitas vezes, negam seu lugar com medo deserem frágeis o suficiente para perderem seus costumes, seus princípios. Eu sempre vou tender a achar que toda a mistura entre povos é o melhor caminho. Ninguém pode ser escravo de ninguém, tampouco estar submisso a este o aquele país.

#11 Antenas (Luciano Mello)

Antenas trata do quanto somos diariamente bombardeados por ideias e manipulações e do quão difícil é nos livrarmos de tudo isso. Antenas é a confirmação do que diz o álbum. Parece que já perdemos o controle de tudo o que nos cerca. Não se pode ter medo de lutar por direitos, não se pode deixar que o mundo seja de tão poucos. Estou falando daqueles poucos que a tudo controlam e nada dividem.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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