Mano a Mano

Vol. 2
2017 | Edição de Autor | Jazz

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Mano a Mano é o duo composto pelos irmãos André e Bruno Santos, guitarristas com um vasto percurso na área do Jazz. Aquilo que começou em casa, em jeito de brincadeira, tornou-se sério, foi ganhando forma ao longo dos anos e resulta agora no segundo trabalho discográfico dos manos, gravado a 1 e 2 de Julho no Paulo Ferraz Studio, no Funchal, cidade onde nasceram.

#1 Super Mario (André Santos)

André Santos: Eu, quando era mais novo, passava horas a jogar consolas e computadores, muitas dessas horas na mesma sala onde o meu irmão estudava guitarra e ia plantando a semente da música em mim. Este tema original, que foi gravado pela primeira vez no meu disco ‘Vitamina D’, mas que sempre imaginei que soaria bem em duo com o mano Bruno, é baseado em 3 ou 4 ‘malhas’ inspiradas na banda sonora do clássico jogo ‘Super Mário’. Fiz algumas mudanças no arranjo em relação à versão gravada anteriormente e ambos concordámos que resultava bem no nosso duo. É um tema bem disposto e achámos que servia muito bem como tema de abertura do disco. Os fãs do canalizador mais famoso do planeta podem apanhar algumas moedas e outros piscares de olho ao longo do tema.

#2 Dinah (Harry Akst/Sam M. Lewis/Joe Young)

Bruno Santos: Andava a pensar num daqueles temas de jazz bem antigos para adaptar ao duo dos manos e ouvi uma versão deste tema, que foi escrito em 1925, do pianista Thelonious Monk. Uma interpretação a solo, incrível. Aí fiquei logo convencido em incluí-lo no nosso repertório. Já tínhamos conversado sobre ter uma dessas canções mais antigas do repertório de jazz, faltava definir qual. Depois ouvi uma versão do Chet Baker, numa formação alargada, e decidi que esses 2 arranjos seriam a inspiração para a versão Mano a Mano. Então montei um arranjo, chamei o André, ensaiámos, retocámos e cá está. Além de ser um lindo tema, as versões que me inspiraram são de 2 músicos que nos dizem muito.

#3 A cadeira, o baloiço e a rosa (Bruno Santos)

Bruno Santos: Pode não parecer, mas é um tema de amor. Não há letra para tornar a coisa assim clara e explícita, mas é um tema de e por amor. Escrito numa cadeira de baloiço e inspirado pela mais linda Rosa. Imaginei que a nova aquisição do André, a braguinha, maravilhoso instrumento de cordas da Madeira, “cantaria” este tema do modo que imaginava. Mandei aquilo que já tinha ao André, ele também achou que ficaria bem e a partir daí foi o processo do costume, juntar as 2 guitarras, dar uns retoques no arranjo, até chegar à versão final.

#4 Without a song (Vincent Youmans/Billy Rose/Edward Eliscu)

André Santos: Esta é uma canção de que gostamos muito! E a versão que mais nos inspirou foi a do Sonny Rollins com o Jim Hall, no álbum ‘The Bridge’. Quando começámos a tocar juntos, só nos preocupávamos em tocar músicas de que gostávamos, sem grande preparação prévia. E aqui foi assim, aprendemos a canção e sem grandes arranjos, mudámos um bocadinho o balanço do tema e fomos directos ao assunto!  Fico sempre com o astral para cima quando começo a introdução desta música.

#5 Vignette (Hank Jones)

André Santos: Conheci este tema num disco do Coleman Hawkins, que comprei recentemente, chamado ‘The High and Mighty Hawk’. É uma bela melodia, alegre, do pianista Hank Jones, que me ficou entranhada desde a primeira vez que ouvi o disco. Mostrei ao meu irmão e ele também não resistiu! Aprendemos o tema e fomos para o ensaio experimentar algumas coisas. Tornámo-lo uma valsa e fizemos algumas mudanças de tom ao longo do tema. Nós achamos que são mudanças subtis e que só nota quem está mesmo atento. Esperamos não estar enganados e que, de repente, este tema seja um arraial de mudanças de tonalidade sem nexo!

#6 Nem tudo é o que parece (Bruno Santos)

Bruno Santos: Tema que compus para este novo disco de Mano a Mano. E se não estou em erro, o último tema a entrar no alinhamento. Andava às voltas com uma ideia assim com onda contemplativa, mas de repente virou para uma coisa afro e groovy. O título tem a ver com isso. Parece uma coisa, mas de repente, tudo muda e é outra. Tudo pode acontecer. Tudo é possível. E as aparências podem iludir. Para tornar a coisa ainda menos óbvia, o André sugeriu que eu ligasse o pedal de reverb e delay no máximo, e criasse assim uma massa de sons. E “obrigou-me” a enrolar um pedaço de papel nas cordas para o solo. A guitarra fica com um som mais seco, parece um instrumento percussivo vindo de África. Apesar de ter sido um tema escrito por mim, tem uma participação decisiva do André, com sugestões para efeitos e ambientes, e é dele a parte final do tema.

#7 Modinha / Carta ao Tom (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) (Toquinho/Vinícius de Moraes)

Bruno Santos: A música brasileira foi o que nos lançou decisivamente para o jazz. Ouvimos e tocámos muitas canções dessa vastíssima obra deixada por compositores como Tom Jobim, Chico Buarque e Vinícius, entre muitos outros.

E como é natural, visto que Mano a Mano existe para podermos tocar as nossas versões das canções que nos dizem alguma coisa e que nos ligam, é obrigatório termos no nosso repertório canções desses senhores.

Estas 2 canções, que eu e o André adoramos, foram escritas pelo Tom Jobim e Vinícius de Moraes (Modinha); Toquinho e VM (Carta ao Tom). O desafio é passar a força destes temas, sem se ouvir a letra. Difícil, mas possível. A letra do Modinha é de cortar os pulsos. Reparem só nesta abertura:

Não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão
Que é só desilusão“.

Fortíssimo.

“Carta ao Tom” é um texto escrito em modo de carta e endereçada ao Tom Jobim. A letra abre com a referência à sua morada e fala dos primeiros encontros com Elizeth Cardoso. É uma espécie de berço da bossa nova, visto que foi lá que muita coisa foi escrita. É uma canção que fala de amor e da decadência do Rio de Janeiro. Uns anos depois, o TJ escreveu uma letra para esta canção, “Carta do Tom”, uma resposta à carta do Toquinho e Vinícius, e fala da destruição da natureza por parte do homem, com referências claras à cidade do Rio de Janeiro.

Há cerca de um ano, fomos tocar ao Hot Clube, e eu sugeri ao André montar um arranjo para estas 2 canções e tocá-las seguidas. Coladas. Percebemos que tinha muita força pela reacção das pessoas. Perfeito! Das primeiras escolhas para o novo disco. Há já muitos anos que a música brasileira está muito presente nas nossas vidas, tinha de estar no vol. 2.

#8 Bolinha de papel (Geraldo Pereira)

André Santos: Lembro-me bem de quando me foi oferecido o primeiro walkman, tinha eu uns 8/9 anos, e lá dentro estava uma cassete do incrível João Gilberto, que ouvi até não poder mais. ‘Bolinha de papel’ era uma das músicas que estava nessa fita. Mais tarde descobri que é um samba antigo, escrito por Geraldo Pereira.

Fiz este arranjo quando ainda vivia em Amesterdão, a pensar no concerto de apresentação do nosso primeiro disco, no Hot Clube, em Dezembro de 2015. Fiz uma introdução inspirada na melodia e, para o tema, baseei-me na harmonia que o João Gilberto faz. Utilizei também, para separar a parte improvisada do regresso ao tema, uma pequena secção que o João Gilberto canta na versão dele como introdução. Outra versão que descobri enquanto fazia este arranjo foi a do Grupo Tarsis, um grupo vocal brasileiro. Vale muito a pena ouvir!

Este arranjo, inicialmente pensado para duas guitarras, sofreu pequenas alterações quando comecei a sentir-me mais à vontade com a braguinha, o tal instrumento tradicional madeirense. Achei que a tessitura mais aguda deste instrumento seria perfeita para esta melodia, e também porque tinha no meu imaginário o universo do chorinho, onde o cavaquinho, irmão separado à nascença da braguinha, tem um papel fundamental. E assim foi! Desde que experimentámos a braguinha neste arranjo, nunca mais quisemos outra coisa.

#9 Grand slam (Benny Goodman/Jim Hall)

Bruno Santos: Escrito por um dos nossos guitarristas e músicos favoritos, Jim Hall. Vi-o tocar este tema ao vivo, no Seixal Jazz, em 1998! E tenho uma história incrível há uns anos largos, na ilha Terceira, no Angrajazz. Eu ia lá tocar no primeiro dia do festival e o Jim Hall tocava no terceiro e último. A organização ligou-me a pedir para levar o meu amplificador porque o Jim Hall tinha pedido um igual e não havia nenhum na ilha.

Eu disse, tudo bem. Iam alugar, eu contrapus com estadia até ao último dia do festival e assim podia ver um dos meus primeiros heróis. Perfeito.

No dia do concerto, houve um almoço com elementos da orquestra de jazz de Angra. Ora bem, a coisa foi mais animada do que parecia e de repente faltava 1h30 para o concerto. Fui ao hotel, que era ao lado do recinto onde decorria o festival, tomei um banho e sentei-me na cama para descansar 10 minutos. Acordei às 2h da manhã… Não vi o Jim Hall! Fiquei lá para isso, mas falhei o concerto! Na manhã seguinte, fui sentado ao lado dele na carrinha que nos transportava para o aeroporto a rezar para que não me perguntasse pelo concerto. Disse-lhe que ele tinha sido uma grande inspiração para mim, ofereci um disco meu onde está um tema que lhe é dedicado. E é assim a minha história com o Jim Hall.

O “Grand Slam” é uma dedicatória do Jim Hall àquele que, segundo consta, é o primeiro guitarrista eléctrico de sempre, Charlie Christian.

André Santos: E o Jim Hall conta, em várias entrevistas, que uma vez estava a ouvir rádio e começou a ouvir um solo de guitarra que o ‘agarrou’ ao ponto de pensar ‘quero ser capaz de fazer isto!’. Era o solo histórico de Charlie Christian numa versão de um outro ‘Grand Slam’, da autoria de Benny Goodman.

O Charlie Christian inspirou o Jim Hall, e o Jim Hall inspirou-nos aos dois. E esta é a nossa singela homenagem a estes dois guitarristas incontornáveis, juntando o Grand Slam de Benny Goodman com o do Jim Hall e tocando o solo do senhor Christian lá pelo meio.

#10 Trinkle, tinkle (Thelonious Monk)

André Santos: Como já se percebeu, gostamos de homenagear alguns dos nossos heróis e de aprender temas e canções baseadas em versões originais ou próximas da original. E esta foi mais uma delas. Esta música era uma das faixas que fazia parte do primeiro disco de Jazz que o meu irmão me ofereceu. Thelonious Monk ‘Live at the five spot: Discovery!’, uma gravação ao vivo do pianista T. Monk com o lendário saxofonista, John Coltrane. Este tema frenético, da autoria de Monk, despertou-me a atenção desde a primeira audição, mas só recentemente o aprendi, e tinha de ser para tocar com o meu irmão! Neste arranjo, baseado em várias versões de Thelonious Monk, há muita pergunta e resposta. Na secção de improviso, mantemos esse espírito. É o tema mais contrastante do disco, mas gostamos muito de o tocar. Esperemos que a audição seja igualmente boa!

#11 Mano a Mano (André Santos/Bruno Santos)

Bruno Santos: O primeiro tema a meias dos manos. Geralmente trabalhamos a dois e em interacção constante, mas um de nós traz já uma ideia finalizada, só com acertos e adaptações a fazer nos ensaios. Aqui foi tudo feito de raiz, a 4 mãos. Verdadeira parceria! Eu tinha a ideia para um groove cool, só com 2 acordes, coisa muito simples, assim a remeter para um balanço cabo-verdiano. O André foi construindo a melodia por cima do balanço. Para o final, sugeriu um ambiente com muitos efeitos, loops, delay, reverb, etc., e nessa secção ele faz quase tudo sozinho, eu faço só umas “pinturas”. O tema tem uma introdução assim mais musculada, mas depois remete para o tal balanço cool e o mote é esse até ao final. Acho que ficou bonito. E sendo a primeira parceria, decidimos baptizá-la de “Mano a Mano”.


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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