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Poderias tu pescar o leviatã com linha e anzol? Ou atar-lhe a língua com uma corda? Serias tu capaz de o prender com uma corda no nariz, ou furar-lhe as queixadas com uma escápula? Porventura iria ele pedir-te que desistisses das tuas intenções e tentar brandamente fazer-te mudar de ideias? (…) Não há nada mais tremendo, sobre a face da terra, que se lhe possa comparar. De todos os animais, é o mais altivo — é o monarca de todos eles.
A filmografia ainda curta de Andrey Zvyagintsev, muitas vezes referenciado como o herdeiro de Tarkovsky, é composta de histórias de provação que abordam temas como a justiça, a sobrevivência a moralidade e o conflito interno entre o bem e o mal. São disso exemplos os premiados O regresso (2003) ou Elena (2011), ambos exibidos nas salas portuguesas. Prevalecem no seu cinema alguns códigos do realismo geralmente suavizados no cinema contemporâneo, que comunicam de uma forma quase visceral. É um estilo fílmico incomodativo que parece observar as entranhas das personagens – e as nossas. Leviatã é, antes de mais, uma crítica pouco subtil à sociedade russa (algumas das cenas foram mesmo censuradas no país de origem), mas ultrapassa largamente as suas especificidades. É um drama humano universal, que poderia ter lugar em qualquer parte do mundo moderno.
Curiosamente, Zvyagintsev e Oleg Negin, basearam-se numa história americana para escrever a de Kolya (Alexey Serebryakov). Na Península de Kola, no Mar de Barents, um lugar de estranha beleza, Kolya vive tranquilamente a segunda esposa Lilya (Elena Lyadova) e Roma (Sergey Pokhodaev), o filho adolescente. O pacato quotidiano da família é perturbado quando o autarca Vadim se mostra interessado em tomar-lhes a casa, as terras e a pequena oficina que possuem. Ao perceber que Kolya não cede aos seus subornos, Vadim adopta estratégias mais agressivas (e menos honestas), corroboradas pelo padre local, para satisfazer o seu capricho. Para se defender, Kolya recorre Dmitriy (Vladimir Vdovitchenkov), um velho amigo que trabalha em Moscovo como advogado. Enquanto o conflito se arrasta, a relação dos dois amigos deteriora-se, enquanto Kolya se afunda em vodka e obstinação e Dmitriy se envolve com a bela e desamparada Lilya.
Leviatã produz um tremendo impacto em termos visuais. O ambiente e a fotografia (um dos aspectos mais impressionantes do filme), ao mesmo tempo que traduzem uma marca muito distinta do cinema russo, são também uma personagem da narrativa, convidando o espectador à reflexão sobre o que se discute. A direcção de Zvyagintsev é muito simples, mas eficaz nos seus propósitos: a câmara percorre, em planos abertos lentos, as paisagens lindíssimas e desoladoras da Península de Kola, ora acompanhada de longos silêncios, ora embalada pela banda-sonora de Philip Glass. Há qualquer coisa de paraíso perdido ou de inferno na Terra, que parte da das características do cenário natural e se transpõe para o comportamento humano nas suas diversas dimensões – primeiro a pública, depois a privada, depois ainda a íntima – e todo o tecido moral é posto à prova. Pode um homem comum vencer uma luta inglória contra o sistema? Até que ponto resistirá o orgulho de Kolya? Quão diminutos serão os escrúpulos de Vadim? Entre a amizade e o amor, qual o valor mais alto? Pode uma esposa infeliz ser censurada por procurar afecto nos braços de outro homem?
Em termos concretos, o filme analisa a relação entre política e o discurso religioso, a corrupção do poder, a arbitrariedade da justiça e a ambivalência perante uma situação adúltera. Mas de uma forma mais abrangente, pode dizer-se que, tal como os filmes anteriores, Leviatã é um ensaio ácido sobre a natureza humana que insiste no argumento da corruptibilidade: Em circunstâncias extremas, ninguém é moralmente incensurável. Não haveria, por isso, a necessidade de explicitar a relação simbólica entre o enredo e a parábola de Jó (embora a ligação seja, a dado momento, explanada num diálogo entre Kolia e o padre local). O cenário decadente e pós-apocalíptico, ornamentado por carcaças de barcos e baleias, sugere que os antigos monstros estão mortos – mas os de hoje são ainda mais assoladores. O Leviatã que Kolya enfrenta não é uma terrível criatura marinha, mas antes uma besta moderna banal: o Leviatã é o próprio Estado, personificado na figura detestável de Vadim, representante do poder instituído, corrupto e obscuramente aliançado com poder religioso. Kolya é comparado a Jó, o homem comum injustamente acossado.
Vencedor do Globo de Ouro para melhor filme estrangeiro e prémio de melhor argumento em Cannes, o filme desesperado de Andrey Zvyagintsev é um triunfo em todos os seus predicados. Enquanto os filmes anteriores são marcados por uma tonalidade de “tragédia soviética”, este trabalho é mais expansivo, com um toque de cinismo e humor negro, elevando o seu cinema a uma espécie de oitava arte – a própria vida. Tecnicamente impecável, com desempenhos notáveis (com destaque para o protagonista, Alexey Serebryakov) e um argumento com vários níveis de análise, qual deles o mais denso e interessante, o seu único ponto fraco será o seu fatalismo intransigente – uma visão desencantada da natureza humana que às vezes chega a ser dolorosa.