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Em Hunger, Steve McQueen abordou um tema muito sensível: a greve de fome dos prisioneiros da Irlanda do Norte liderada por Bobby Sands. Em Shame, um tema mais universal – e muito actual – visto que embora a personagem principal, Brandon seja um viciado em sexo, há uma sensação indelével de que isso é apenas um sintoma da sua profunda solidão. Um vazio avassalador que parecia afogá-lo e a qualquer sentido ou significado para tudo, distintamente demonstrado nas sequências em que vemos o protagonista a correr.
Apesar de 12 Years a Slave também lidar com um tema controverso, parece-me que é de longe bem mais aceitável retratar o tema no cinema, do que os dois filmes anteriores de McQueen (talvez também pela distância temporal). Em qualquer um dos três McQueen realiza magnificamente, trazendo-nos uma experiência inteiramente realista da condição humana. A maior diferença (para além do tema) é que em 12 Years a Slave é notório que o realizador tem acesso a mais recursos.
O filme traz-nos a história de Solomon Thorpe, um homem livre e um violinista do séc. XIX, que se encontra subitamente num pesadelo quando é enganado e raptado como escravo. À medida que avançamos pela jornada de Solomon, somos capazes também de ver o desespero da separação (desolador quando uma das personagens é afastada dos seus filhos), a ultrajante iniquidade num mundo sem Deus e o desaparecimento de toda a esperança à medida que os dias se tornam semanas, as semanas meses e os meses anos. McQueen foca-se no inanimado tornando alguns objectos particularmente vivos: uma carta a arder, um violino a partir-se ou um pedaço de sabão. Pequenos objectos parecem ter um grande significado num mundo abominável, onde as coisas ganham uma nova perspectiva.
“I don’t want to survive. I want to live.” Esta é uma das primeiras declarações de Solomon, mas – à medida que o filme se desenrola – é-nos mostrada a desintegração desse desejo ao longo do tempo com todas as dificuldades do percurso. Desintegração essa representada, sobretudo, por Edwin Epps, maravilhosamente (ou diabolicamente, seria a palavra mais adequada ao contexto) interpretado por Michael Fassbender e que torna sobreviver a única saída possível ao longo do percurso de Solomon. Testemunhamos também a crescente tensão e o desespero absoluto, que McQueen criou na forma duma jovem escrava interpretada por Lupita Nyong’o (com uma performance arrebatadora, capaz de nos levar às lágrimas e que lhe valeu – aliás – o Óscar de Melhor Actriz Secundária). A maneira como os olhos dela imploram a Solomon numa das cenas mais acutilantes do filme é inesquecível: uma imagem que nos perseguirá para sempre.
A tremenda injustiça e aparente aleatoriedade das atrocidades são marcadamente bem construídas em duas personagens secundárias, interpretadas pelo talento de Sarah Paulson e Paul Dano, ambos transmitindo uma imprevisibilidade selvagem que coloca a audiência no limite do abismo. Chiwetel Ejiofor como Solomon tem uma performance segura e convincente. Empatizamos de imediato com a agonia da sua personagem, como se também nós mal pudessemos imaginar a forma que as circunstâncias tomaram. A impressionante capacidade de Ejiofor the se expressar simplesmente com os olhos é inspiradora e característica dos actores de McQueen. Fassbender, na sua terceira colaboração com o realizador, está incrível, como habitualmente. A Academia deveria ter reconhecido o seu papel em Shame com, pelo menos a nomeação (o mesmo se aplica à realização de McQueen), mas felizmente reconheceu-lhe aqui o talento com a Nomeação para Melhor Actor Secundário. O trabalho notável de John Ridley na adaptacão do livro 12 Years a Slave de Solomon Thorpe é uma das razões pela qual o filme é tão poderoso e verdadeiro.
Outro aspecto extraordinário do filme (para além da história e dos actores) é o verde magnético dos cenários. Vemos todos os pântanos do sul americano no seu total esplendor e conseguimos quase sentir o calor a atravessar-nos, tal como atravessava o trabalho duro daqueles campos de algodão intermináveis. A música é uma imperceptível base emocional de qualquer filme, particularmente num filme de tanta profundidade como este, onde as emoções são magistralmente sublinhadas pelo som, desde a tranquila tarde de uma paisagem quase idílica até aos gritos imprevisíveis de um campo de tortura – ambos, em última análise, reflectindo os sentimentos internos das personagens. McQueen é brilhante porque põe o dedo na ferida (literalmente neste caso) e não há emoções que permaneçam à medida que a esperança parece desaparecer. Até que uma rápida e chocante sequência põe fim à miséria de Solomon, como num estalar de dedos, como se subitamente ele tivesse acordado dum horrível pesadelo. Por último, mas não menos importante, Brad Pitt num papel pequeno, mas que representa tudo o que as nossas sociedades (supostamente) defendem nos dias de hoje.
“Laws change. Social systems crumble. Universal truths are constant.” E eu acredito que é inegavelmente universal que, mesmo que o conteúdo dos filmes de McQueen possa tornar difícil que o público os ame, em 12 Anos Escravo foi feito um trabalho prodigioso, tornando-o um dos que vai sobreviver ao tempo.