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À Jamais
Título Português: Até Nunca | Ano: 2016 | Duração: 86m | Género: Drama
País: França, Portugal | Realizador: Benoît Jacquot | Elenco: Mathieu Amalric, Julia Roy, Jeanne Balibar

O mais recente filme do prolífero e ecléctico realizador francês Benoît Jacquot, À Jamais, tem origem no livro The Body Artist, de Don DeLillo, cuja adaptação Paulo Branco lhe sugerira. Julia Roy, a protagonista feminina, é também encarregue de adaptar o guião e, para reduzir os custos, o filme é rodado em poucas semanas, em Portugal, entre Lisboa, uma villa ao sul e as estradas portuguesas, com uma equipa próxima de Jacquot, na qual se incluem Mathieu Amalric e Jeanne Balibar.

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Rey (Mathieu Amalric), um cineasta francês que vive em Portugal, conhece Laura (Julia Roy), uma jovem artista corporal francesa, numa sala do CCB onde ela leva a cabo uma performance. Ele, que estava apenas a girar enquanto o seu filme era visionado ao lado, é tocado pela graça dela e, sem ainda lhe conhecer o nome, segue-a até ao exterior. Quase sem interlúdios, convidam-se mutuamente à fuga e partem, montados na mota de Rey, em direcção à sua casa a sul, ao lado do mar. O acaso do encontro e a impetuosidade da evasão levam-nos a um huit clos raramente a mais de dois. Daquela casa só sairão para fazer compras, ou para caminhar na praia. Enquanto ele se debruça sobre o guião do seu próximo filme, ela habita-lhe a casa e a vida, transformando-as em algo de novo.

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Os diálogos são raros e arenosos e as cenas avançam de elipse em elipse. Primeiro vêm os sonhos: Rey não costumava lembrar-se deles, mas desde que a tem consigo, sonha-a constantemente. Depois vem o inverno e, com ele, os barulhos do vento, da chuva e das portadas que batem, que incomodam Laura e que servem de prelúdio a uma ameaça iminente. O guião, por outro lado, apesar ou devido à presença da nova esposa, não avança. O artista em crise, incapaz de concluir a obra e impossibilitado a recorrer à sua antiga musa Isabelle (Jeanne Balibar), abandonada em Lisboa, durante a apresentação do filme, inicia o procedimento padrão de isolamento, de fuga. Vemo-lo lutar com os fantasmas interiores que Laura cria, ou que já não consegue fingir extinguir, até que ele parte abruptamente para França, para encontrar Isabelle. Volta para Lisboa, culpado, prostrado ou simplesmente perdido e, da velocidade da sua mota, saltamos directamente para o seu funeral.

Apesar de a força de Rey não parecer sugerir o acto de suicídio, é essa a resposta à elipse que vai desde o momento em que ele fecha a viseira do capacete – para poder acelerar ou para imitar aqueles que colocam os óculos antes de saltar da janela – até ao flagrante de Laura a colocar o telemóvel do falecido no caixão, como forma de perturbar o discurso solene de Isabelle. Esta acção é, aliás, mais interessante do que a causa da morte de Rey. Apercebemo-nos, à semelhança dos filmes anteriores de Jacquot, que a história apenas marginalmente é sobre o protagonista masculino.

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Laura fica entregue ao luto e à consciência do triângulo amoroso de que fez parte, mas não é bem dessas coisas que o filme trata. A ameaça contida nos sons (da casa e da música que Jacquot lhe adiciona), nos planos e nas sugestões dos diálogos parcos ganha ritmo e chega a parecer que realmente vai sair algum fantasma do quarto abandonado. Em vez disso, contudo, é a memória de Rey que nos surpreende. Incapaz de habitar a casa sozinha, Laura vê-se obrigada a habitar a memória do marido. Veste-lhe as roupas, fuma-lhe os charutos e lê-lhe os apontamentos. “Je reprend possession de moi par toi. Moi-même à présent et plus celui que j’étais devenu”, escrevera Rey, a propósito da transformação que o encontro com a mulher lhe proporcionara. Fora talvez por isso, por deixar de ser quem era, por tomar posse de um eu novo, que o cineasta fora despojado da capacidade de criação.

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Enquanto criação de Laura, Rey existirá, não obstante, para além da sua morte física. É nessa condição que ele permanece, mudo, incapaz, na vida dela. Quando ela o vê, vê-se, na verdade, a ela mesma, e Jacquot faz questão de articular essa visão. Ao entregar-se à memória do marido, Laura entrega-se, na verdade, ao solipsismo, à partilha e ao desejo com ela mesma e, se pusermos em perspectiva a primeira parte do filme, talvez fosse essa a premissa da entrega e da fuga cega. Não é de solidão que ela padece, é para lá disso: a solidão desaparece quando a paixão reverte para a imagem do próprio eu, quando a possibilidade do outro se desvanece. O luto de Laura remete mais para a assumpção da perda do eu nos outros, do que para a perda dos outros, para o eu. Esta hipótese desviante é a praia de Jacquot, que lida melhor com as lutas interiores da psique do que com a descrição circunstancial e linear dos eventos e das relações exteriores. Os seus filmes e personagens chamam-nos a olhá-las por dentro, sem alguma vez nos oferecerem solução rápidas e decisivas sobre motivações e intenções pessoais.

Apesar de ser um dos seus filmes mais secos, À Jamais merece ser visto, até porque a sua singularidade ganha com o distanciamento dos dias. A frieza e a simplicidade da história, dos seus diálogos e décor concentram a atenção do espectador nos sinais de fatalidade que não se cumprem nem na morte de Ray, nem na aparição do seu fantasma, nem na possível loucura de Laura. A tragédia é a da espera: da espera que a imaginação se alinhe com a vontade e que a memória substitua a realidade.


sobre o autor

Ana Ferraria

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