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Na sala de cinema, apagam-se as luzes. Ao som de uma banda-sonora familiar surgem os créditos de abertura em fundo preto: Starring in alphabetical order. Pensamos: Estamos em casa. Depois de Wonder Wheel (2017), também Woody Allen regressou à sua amada cidade fetiche, onde o seu novo filme não verá a luz do dia depois da mais recente polémica sobre eventuais comportamentos impróprios para com a sua prole adoptada (nada de novo, portanto). Inocentado em tribunal, mas condenado em praça pública, Woody Allen viu a estreia sofrer adiamentos sucessivos, quebrando a tradição anual de um novo filme.
No final de 2019, A Rainy Day in New York chegou finalmente às salas europeias. E uma vez mais, muito dele é europeu, apesar do seu cenário. Como de costume, há um cuidado especial na escolha dos protagonistas, desta vez com foco claro na nova geração de actores americanos: o elenco é encabeçado por Timothée Chalamet (nas bocas do mundo desde Call Me By Your Name), Elle Fanning e Selena Gomes, secundados pelos veteranos Liev Schreiber, Jude Law, Rebecca Hall ou Diego Luna.
O argumento gira em torno das peripécias de um jovem casal – Gatsby (Chalamet) e Ashleigh (Fanning) – que viaja até Manhattan durante o fim-de-semana a pretexto de uma entrevista dela para o jornal da sua alma mater. Ele é um jovem de boas famílias, inconformista e boémio, determinado a escapar ao futuro normativo que os pais lhe planearam. Ela, uma inocente aspirante a jornalista, mal pode esperar por entrevistar Roland Pollard (Schreiber), o realizador americano mais interessante do momento, lamentavelmente em crise criativa. Como seria de esperar, Ashleigh sucumbe aos encantos do entrevistado e é arrastada para um turbilhão de acontecimentos neuróticos que envolvem ainda o argumentista de Pollard (Law), a sua esposa infiel (Hall) e um lascivo actor latino (Luna). Goradas as expectativas de um fim-de-semana romântico, Gatsby vai conseguindo distrair-se dos seus dramas existenciais deambulando por uma Nova Iorque à chuva. Pelo caminho, reencontra Shannon (Gomez), irmã mais nova de uma antiga namorada.
Woody Allen já amou Nova Iorque em todas as estações; mas há uma poética particular nesta Nova Iorque chuvosa, uma cidade-personagem, sempre melancólica, imersa numa aura anacrónica suspensa no tempo.
Logo na primeira cena, destaca-se o requinte visual da fotografia de Vittorio Storaro (na terceira colaboração com Woody Allen), a cinzelar o verde-dourado dos campos que rodeiam a Universidade onde estudam os protagonistas, e de seguida uma Nova Iorque onírica que, como o próprio Woody Allen admite, existe apenas no seu imaginário: O sol fugidio que rompe a atmosfera cinzenta, a chuva brilhante a bater nos pára-brisas, as sofisticadas galerias e museus, as luzes mornas dos bares e restaurantes, as ruas limpas e tranquilas. Woody Allen já amou Nova Iorque em todas as estações; mas há uma poética particular nesta Nova Iorque chuvosa, uma cidade-personagem, sempre melancólica, imersa numa aura anacrónica suspensa no tempo, que uma vez mais lhe serve para emoldurar, com a ajuda da tão conhecida partitura jazzística, um território temático que nos é familiar.
É sem surpresa que encontramos nas personagens diversos traços de outro tempo e do próprio WA. O anti-herói dominado pelos caprichos das mulheres que o rodeiam, o nervosismo e a insegurança nos gestos e discurso, as frases entre-cortadas que demoram a compor-se. O alter-ego do cineasta, embora possua um smart-phone, tem o nome do clássico de F. Scott Fitzgerald, veste-se como um intelectual dos anos 40, joga poker e canta jazz ao piano nos bares da cidade. Mas se Timothée Chalamet assegura o registo psicológico auto-referencial de Woody Allen, é Elle Fanning que afirma a componente comportamental: É naturalmente engraçada e apropria-se dos trejeitos e do tempo das palavras com perfeita candura, fazendo lembrar, num outro registo, as prestações naturais de Diane Keaton em Annie Hall ou Emma Stone em Magic in the Moonlight. Através destas duas personagens, Woody Allen esboça o retrato de uma geração jovem e privilegiada, com acesso à arte e à cultura, mas insatisfeita e sem rumo próprio, que reproduz as frustrações da sua própria geração.
Sem fio narrativo demasiado evidente (na verdade, o relato vai avançando em função de cada ocorrência insólita), Woody Allen cruza as diferentes personagens, cada uma entregue a neuras particulares, numa sequência de trapalhadas carregadas de críticas mordazes, desde a intelectualidade fútil dos meios artísticos, à sátira aos bastidores do mundo do cinema ou à incapacidade dos seus protagonistas em resistir aos encantos de uma ninfeta (dado o momento, não deixa de ser um pormenor curioso). De resto, o argumento está recheado de tiradas satíricas que dificilmente serão coincidências, como a hilariante apresentação de Ashleigh ao realizador – I have seen all the american classics, especially the europeans. O cinema de Woody Allen, sempre mais apreciado em solo europeu, agora não tem sequer direito a estreia nos Estados Unidos.
Time flies. Unfortunately, it flies coach. E nem sempre é confortável. Talvez por isso A Rainy Day in New York seja mais um retrato do que uma história, um postal de Woody Allen sobre um tempo parado num lugar ideal, onde habitam suas as personas e dramas de eleição. Visualmente perfeito, com uma encenação elegante, actores competentes e frases certeiras, é o 50º filme de um percurso com mais de cinco décadas que pode resumir-se numa palavra: Consistência. Muitos dirão que já vimos este filme. Mas na verdade, nunca vimos este filme. É esse o mérito deste cinema, um universo íntimo que a cada obra se reinventa, que faz da repetição um género e dos seus temas um tratado por acabar. Isto é cinema de autor. Aguardamos ansiosamente pelo próximo.