Partilha com os teus amigos
Alentejo, Alentejo
Título Português: Alentejo, Alentejo | Ano: 2015 | Duração: 98m | Género: Documentário
País: Portugal | Realizador: Sérgio Tréfaut | Elenco: ---

A viagem ao Alentejo de Sérgio Tréfaut, vencedora do prémio para melhor filme português no IndieLisboa 2014, é um filme feito de música que penetra naquela realidade por meio do Cante Alentejano – um canto coral polifónico com raízes no folclore popular, que perdura sobrevivendo graças aos homens e mulheres que o cultivam e transmitem de geração em geração. Primeiro o silêncio, depois uma primeira voz que canta uma estrofe, à qual se segue o coro; o Cante é vagaroso e de estrutura particular: as estrofes repetem-se, com pausas em momentos improváveis, numa cadência monótona e plácida que relata a faina no campo, os males de amor, as agruras de uma vida dura num passado não muito distante. Neste lugar, a música é bem mais do que uma herança cultural que conta histórias de outros dias, é antes a própria identidade do povo. Alentejo, Alentejo revisita as origens do Cante através dos depoimentos dos idosos – em casa, em torno da tradicional açorda, do pão e do vinho, simples prazeres da terra que os criou – que relatam um passado de pobreza e sacrifício a que se sobreviveu cantando. Explicam eles que as modas do Cante nasceram nas vozes dos mineiros e trabalhadores agrícolas, em dias de trabalho intenso e sem recompensa, onde a música era a consolação dos dias escuros, o alimento dos corpos malnutridos, a literacia dos analfabetos. É essa a grande beleza do Cante: se o seu objecto é muitas vezes triste ou pessimista, o seu fruto é de alegria e de conforto, o seu alimento é o da memória. Um dia, o Cante marcou também um momento notável, quando uma cantiga sobre Grândola se converteu no símbolo da vitória de uma geração lutadora e perseverante, sendo hoje a canção política mais ouvida na boca do povo descontente e nas vozes urbanas de uma geração que perdeu o sentido da revolução.

Mas o Cante tem um passado e um futuro. Originalmente cantado por homens, mas agora por mulheres e grupos mistos de todas as idades, a sua arte transpôs os limites da região que o viu nascer, por meio da dedicação de coros organizados que teimaram em dá-lo a conhecer nas grandes cidades (no início do filme, vemos um desses grupos a viajar para a capital do império, para actuar numa grande festa na Praça do Comércio, coroada por um concerto de Tony Carreira). Outras entrevistas a gerações mais jovens, mostram também que nos dias de hoje, onde outro tipo de dificuldades impera, o Cante se reinventa nas vozes dos mais novos, que o abraçam com a mesma entrega e o impregnam de novos conteúdos. Os males da nossa era – a crise, o desemprego, a inevitabilidade da emigração – invadem os temas agora cantados por adolescentes e jovens adultos, em cujos olhos e vozes se reconhece uma paixão por um Alentejo ainda muito amado. Nas escolas, observamos que as crianças também cantam e contam as histórias dos pais e parentes que se foram para outras paragens à procura de uma vida melhor.

Sérgio Tréfaut teve aqui o dom de pouco interferir com a realidade filmada, o que permite que a matéria do filme suscite afectos muito pessoais em cada espectador (assim também aconteceu com trabalhos anteriores, como o tão peculiar A cidade dos mortos). Íntimo como se filmado à lupa, contemplativo e abrilhantado por uma lindíssima fotografia – com grandes planos das paisagens alentejanas, do quotidiano das gentes, mas sobretudo das experiências e memórias gravada na pele – Alentejo, Alentejo é uma jornada emocional que oferece tão-somente a observação do costume do Cante, examinada e comentada pelos seus cantores. Mais do que os relatos, as emoções de quem o explica asseguram que o Cante é algo com uma expressão fortíssima, resistente e moldável à passagem do tempo, ainda e sempre viva nas gerações de intérpretes alentejanos novos e velhos que a acarinham, preservando a memória de um contexto social, cultural e socioeconómico que afinal o tempo não mudou assim tanto. Também agora os dias são duros. Também agora “não há trabalho”. Mas cantando a tudo se resiste – e é tão grande o Alentejo.


sobre o autor

Edite Queiroz

Partilha com os teus amigos