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Amadeus (1984), biopic magistral sobre um dos maiores compositores de todos os tempos, obra-prima da carreira do realizador checo Miloš Forman, falecido hoje aos 86 anos, baseia-se na obra teatral homónima de Peter Schaffer (igualmente responsável pela adaptação do argumento), um texto alegórico que examina o génio e excentricidade de Wolfgang Amadeus Mozart numa trama narrada pelo seu suposto rival, Antonio Salieri. Misturando ficção e realidade, o argumento adopta incontáveis liberdades do ponto de vista da exactidão dos factos históricos, mas oferece uma visão extravagante da personalidade de Mozart não muito diferente do relato de alguns historiadores. Mozart era sem dúdida excepcional mas também um indivíduo imaturo, leviano e superficial, imprudente com as finanças e com uma relação ambivalente com um pai repressivo. A sua existência breve não permitiu, em vida, o reconhecimento do seu enorme talento: faleceu com apenas 34 anos, na miséria, tendo o corpo sido depositado numa vala comum.
Apesar do título, o imaginativo argumento de Peter Schaffer tem como protagonista não a figura de Mozart mas a de Antonio Salieri, compositor oficial da corte de Viena no final do séc. XVIII. A narrativa inicia-se no início do séc. XIX, altura em que Salieri, idoso e decrépito, se encontra internado num hospício depois de uma tentativa de suicídio. Convencido de ter desempenhado um papel terrível na morte de Mozart, Salieri confessa cinicamente o seu crime ao representante do Deus que denegou. É então relatada, em flashback, a história da ascensão e queda de Mozart enquanto génio artístico.
Aplaudido pelo imperador, Salieri (F. Murray Abraham) vê a sua devoção à música desvalorizada perante a chegada de um prodigioso, irreverente e muito jovem Mozart (Tom Hulce), a quem reconhece um dom de atribuição divina que ambiciona para si e do qual se julga justo merecedor. Trabalhador e altamente temente a Deus, Salieri é incapaz de entender porque teria o Senhor concedido tamanha graça àquela criança obscena, àquele homenzinho insignificante (a forma como a personagem de Mozart se descreve espelha esta contradição inaceitável: I am a vulgar man! But I assure you, my music is not). Os sentimentos de frustração, inveja e repulsa não demoram a apoderar-se de Salieri, para quem o talento de Mozart corresponde a um castigo celeste. Forçado a gerir o paradoxo – uma sincera admiração pelo génio de Mozart, a par de uma inveja incontrolável que se transforma em ódio letal – a aniquilação de Mozart converte-se na única possibilidade de triunfo sobre Deus, o único responsável por tal arbitrariedade – From now on we are enemies, diz-lhe. No entanto, fantasiar com a morte um homem é fácil, mas como concretizar essa pecaminosa intenção: How does one do that? How does one kill a man?…
Inteiramente filmado em Praga, o filme é irrepreensível na celebração da grandiosa obra musical de Mozart, bem como nos pormenores da mise-en-scène que caracterizam o ambiente da corte vienense do séc. XVII, no sumptuoso guarda-roupa de de Theodor Pisteke e na exímia montagem (que alterna a confissão de Salieri no hospício com a retrospectiva da sua juventude na corte) – aspectos premiados pela Academia com os Óscares correspondentes. Ao todo, Amadeus arrebatou oito Óscares, incluindo os de melhor filme, melhor realizador (segundo Óscar de realização para Miloš Forman) e melhor argumento adaptado, e é hoje uma obra de culto absoluto. O seu traço mais brilhante é a composição da personagem de Salieri, um homem devoto e casto mas de afectos contraditórios, atormentado pela tristeza e decepção, que se julga negligenciado por um Deus injusto e amoral – que lhe concede a graça de reconhecer a genialidade da criação musical mas lhe nega a capacidade para a executar, obrigando-o a aceitar a sua “mediocridade”. Ainda assim, um homem bom, cujos sentimentos pérfidos se redimem numa paixão: Quando Mozart lhe dita as notas do seu Requiem já no leito de morte, a inveja de Salieri é vencida pelo amor à música enquanto milagre de Deus. A risada desconcertante de Tom Hulce no papel de Mozart é também hoje um marco na memória do cinema, mas quem arrebatou a estatueta, pelo seu desempenho antológico no papel de Salieri, foi F. Murray Abraham, um actor com um percurso discreto que atinge aqui um feito que muitos não conseguem na carreira de uma vida: Ser inesquecível.