//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Se há um ano me dissessem que estaria numa sala de cinema a ver um filme de Spike Lee, recomendava a essa pessoa um colete de forças e um pacote de 100 dias no Sobral Cid; mas lá fui eu ver BlackKklansman, o filme de que se fala nestes tempos de ideologia em megafone. De certa forma, Spike Lee é o realizador perfeito para a era em que vivemos – nunca ninguém pode acusá-lo de silêncio cúmplice, mas o mesmo se pode dizer para a sua falta de capacidade em analisar assuntos complexos. Lee tem uma carreira brutalmente desequilibrada, misturando obras fundamentais como Do the right thing (1989) ou Malcolm X (1992), sempre radicados num espírito de revolta da comunidade negra (e é bom relembrar que ambos os filmes são de um período temporal turbulento, na passagem da década de 80 e 90, onde a voz negra no cinema era muito mais reduzida do que hoje, e isto é dizer bastante) até equívocos, ainda que bem intencionados como Chi-rac (2o15) ou Bamboozled (2000). Ainda assim, quando se predispõe a isso, Lee é capaz de cruzar a linha e perceber como vive o resto da sociedade. The 25th hour (2002) continua a ser, para mim, o seu melhor filme; Inside man (2006) é um impecável filme heist; e até Summer of Sam (1999), com as suas falhas, tem os seus momentos. É importante ir referindo estes filmes por um motivo: num momento da sua carreira em que Lee se vinha a destacar nos seus documentários (quase todos muito bons), o realizador lança uma obra que acaba por ser uma espécie de best-of dos seus melhores tiques e obsessões.
Esta incrível história verdadeira, de um polícia negro que se fez passar por um membro do KKK quase parece uma das suas criações. O melhor e o pior que se pode dizer sobre o filme é que a subtileza continua a não ser um ponto em que Lee capriche: aceite-se ou não, vamos estar duas horas e tal numa sala a levarmos na cara com pregação, referências directíssimas à actualidade, “abrolhos” relativos ao racismo e no geral, a noção de que algo vai de errado no mundo. Isto é irritante a espaços, mas percebe-se de imediato nos primeiros minutos que o autor é um homem irritado com o mundo e que isso se transmutou para o ecrã. Não desgosto disso – prefiro paixão mal direccionada do que comodismo; e o filme, que quer ser várias coisas mas funciona muito melhor como comédia satírica, é incrivelmente divertido a espaços, se bem que para tal se sacrifique o seu aspecto dramático. Ocasionalmente, Lee tenta dar lições de História e, bem, são as regras do jogo, o que interessa não é apenas a narrativa, mas acima de tudo o grande quadro do lugar dos negros no grande conto da História americana. Há monólogos explicando directamente episódios pouco conhecidos de perseguição racial ditos por figuras importantes na comunidade negra, o que é normal nos seus filmes e se bem que didácticos, são momentos que enfraquecem o filme num todo. A narrativa de um personagem, um branco infiltrado no KKK, pode tornar-se bastante empática, principalmente a partir de uma cena onde a questão da sua identidade judaica é bastante focada, mas estas considerações apenas superficialmente interessam a Lee.
Na sua mira está a América de Trump, o chamado “pós-racismo” e a ideia é arrasar e não deixar nada de pé, usando a grande associação de cavaleiros da supremacia branca como o émulo perfeito dos cantos mais recônditos e aparentemente bem educados do Partido Republicano. Aí, apesar da brutidade, BlackKklansman triunfa em grande estilo, arrancando risos, provocando com alguma suplesse, devolvendo até Lee à bela forma. Dá-me pena vê-lo sem grande interesse por personagens, mas é uma queixa sem grande interesse ou importância, porque o foco do filme é queimar terra e vir recolher cinzas no final. Talvez porque esta é a sua grande oportunidade de falar ao mainstream cinematográfico depois de alguns anos no exílio (aparte o remake de Oldboy, algo que é melhor nem mencionar), Spike Lee aborda tudo desde o papel do negro na sua própria narrativa, a noção da força colectiva da comunidade negra e existem até citações subversivas a uma das obras fundadoras do cinema norte-americano, The birth of a nation, um filme com o qual é sempre problemático de lidar – profundamente racista por um lado, absolutamente fundador da técnica narrativa cinematográfica moderna por outro – num momento em concreto. O final mostra que Lee não vem para brincar ou para examinar matizes: depois do riso, a entrada da realidade com uma picareta, a lembrança de que este filme de época é até mais fruta da época. Em tempos de notícias falsas, de desvalorização da realidade e dos factos, talvez a solução não esteja na análise e no argumento. Talvez, de certa forma, a violência seja a resposta de uma maneira figurada; e BlackKklansman, pelo menos, não se poupa nos biqueiros e caneladas.