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Les Liaisons Dangereuses, romance epistolar de Pierre Choderlos de Laclos publicado em 1782 em vésperas da Revolução Francesa, é um clássico da literatura mundial que revisita o quotidiano da aristocracia francesa do séc. XVIII, dirigindo uma crítica corrosiva à ociosidade, excessos e crise de valores da fidalguia da época. A história foi já por diversas vezes adaptada ao cinema – por Roger Vadim (Les Liaisons dangereuses, 1959), Miloš Forman (Valmont, 1989), Roger Kumble (Cruel Intentions, 1999) e Lee Je Yong (Scandal, 2003) – tendo encontrado a sua maior visibilidade e consagração no filme de Stephen Frears. Baseado na peça homónima de Christopher Hampton (por sua vez baseada no clássico literário acima referido), Dangerous Liaisons assinala a estreia do realizador inglês em território americano. Nomeada para vários Óscares no seu ano – nomeadamente, o de melhor filme – a obra venceu, com justiça, os prémios para melhor argumento adaptado, guarda-roupa e direcção artística. De fora ficou o reconhecimento do elenco de luxo, especialmente de Glenn Close e John Malkovich, possivelmente nos melhores papéis das respectivas carreiras.
A Marquesa de Merteuil (Glenn Close) e o Visconde de Valmont (John Malkovich), protagonistas da história, são dois aristocratas amorais, ex-amantes, que no marasmo do dia-a-dia da nobreza do séc. XVIII se divertem coleccionando aventuras sexuais e fabricando intrigas, arte na qual se tornam peritos. Especialmente maquiavélica e amargurada por um passado que, aos poucos, o enredo vai permitindo desvendar, a personagem de Glenn Close – uma mulher manipuladora, cruel, vingativa e altamente inteligente – chega a ser digna de um thriller psicológico. A Marquesa define-se como uma virtuosa na arte da libertinagem, vangloriando-se por quebrar (de forma dissimulada, já que a sua reputação é aparentemente inatacável) todas as regras e limites impostos à condição feminina da época – I became a virtuoso of deceit. It wasn’t pleasure I was afer, it was knowledge. I consulted the strictest moralists to learn how to appear, philosophers to find out what to think, and novelists to see what I could get away with, and in the end, I distilled everything to one wonderfully simple principle: win or die.
O contraponto masculino da Marquesa é o Visconde de Valmont, um homem vaidoso e sem escrúpulos, uma espécie de D. Juan cujo ego se alimenta do seu crescente número de conquistas. Despeitada por um antigo amante prestes a casar, a Marquesa propõe ao Visconde o desafio de seduzir a casta noiva (uma muito jovem Uma Thurman); considerando o desafio demasiado fácil e quase insultuoso, Valmont contrapropõe-lhe um acordo: se ele fizer sucumbir aos seus encantos uma mulher que ambos avaliam como inatingível – casada e conhecida pelos seus costumes rígidos e fervor religioso – a Madame de Tourvel (Michelle Pfeiffer) – a Marquesa passará uma noite com ele. Mas para Valmont, a noite com a Marquesa de Merteuil é um capricho que o orgulho da Marquesa não consentirá. Lançados os dados, a narrativa desenrola-se como de um jogo de xadrez se tratasse, com movimentações e recuos das personagens centrais, que se espelham uma na outra – duas figuras de carácter muito semelhante, caracterizado por um profundo egocentrismo e uma urgência de domínio sobre o sexo oposto; a presença constante de espelhos na mise-en-scéne reforça não apenas a paridade entre a Marquesa e o Visconde, mas também ideia de duplicidade de carácter, a tensão na trama e a antecipação da jogada seguinte. O triângulo completa-se com a personagem trágica da Madame de Tourvel, um inocente joguete nas mãos de ambos.
O desempenho de John Malkovich é de tal forma irrepreensível (do ponto de vista psicológico e físico) que inviabiliza a possibilidade de imaginar qualquer outro actor no papel. Valmont é uma personagem com um discurso impregnado de sarcasmo, à qual Malkovich soube imprimir o seu charme particular, um olhar cínico de uma autoconfiança sem paralelo e uma linguagem corporal à altura do carácter da personagem, com meneios algo efeminados a contrastar com o comportamento de predador sexual. Cada movimento é sentido como uma movimentação de assédio. Há uma cena no filme em que Valmont engana a Madame de Tourvel, contando-lhe uma mentira, enquanto ela o ouve de olhos pregados no chão; a expressão facial e os meios sorrisos de Malkovich nessa cena – que exprimem o prazer de Valmont na dissimulação e no engano – assinalam uma interpretação antológica. Malkovich é Valmont, mesmo quando o destino lhe troca as voltas e ele se vê vítima do seu próprio carácter – It is the way of the world. Quite beyond my control.
No filme de Frears nada parece falhar, desde a notável tradução das epístolas do romance original para um argumento cinematográfico, à aparatosa produção, ao casting e à direcção de actores. Ao longo do filme e contando com a excelência dos ingredientes, Frears consegue manter a tensão dramática com uma classe impecável e a sensação transbordante de jogo no verdadeiro sentido do termo – como se assistíssemos a uma disputa de tabuleiro de resultado imprevisível. A Marquesa e o Vinconde passam de aliados a rivais impiedosos, que não olham a meios para atingir a vitória – conceito que se desloca dos seus intuitos iniciais para a aniquilação do outro. Como? Utilizando os pontos fracos de cada um como arma de arremesso – no caso da Marquesa, o seu orgulho, no caso de Valmont, o pavor do ridículo. É com base nesta fraqueza que a Marquesa o obriga a perder o controlo do jogo, manipulando-o para a escolher entre o objecto da sua devoção e o receio de uma reputação destruída. Na cena final, é impossível não ter uma sensação de xeque-mate – mas aqui a morte do rei não corresponde exactamente a uma vitória.