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Quem viu a primeira longa-metragem da cineasta e argumentista brasileira Petra Costa, um documentário de 2012 sobre a vida, morte e legado de Elena, a irmã mais velha que se suicidou aos 22 anos, ficou certamente impressionado. Desde logo, por tratar um tema difícil (o suicídio), mas sobretudo pelo tributo, pelo olhar poético, pela competência do trabalho de montagem e pela narração na primeira pessoa num tom suave e melancólico, que se tornaria numa assinatura. Mais tarde chegou-nos Olmo e a Gaivota (2015), realizado em parceria com a cineasta dinamarquesa Lea Glob, uma docuficção sobre uma actriz que espera o primeiro filho que aborda, com a mesma tonalidade melancólica, mais um tema difícil: a desromantização do estado de graça.
Em Democracia em Vertigem, documentário recém-estreado na Netflix, Petra Costa analisa os meandros da crise política brasileira dos últimos anos, colocando o foco narrativo na figura de Lula da Silva: Esta é a história da sua surpreendente ascensão e queda, da forma como o metalúrgico sindicalista que se tornaria dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT) deixou de ser um dos líderes mais populares do mundo para ser um preso político em pouco mais de uma década, e das feridas profundas que estes acontecimentos causaram na sociedade brasileira, abrindo caminho ao retrocesso social e político. Para contar a história, o filme percorre os bastidores políticos, o escândalo da Petrobras e as acusações de corrupção, a operação Lava Jato, o processo de impeachment de Dilma e finalmente a eleição de Bolsonaro.
“Eu e a democracia brasileira temos quase a mesma idade. Eu achava que nos nossos 30 e poucos anos, estaríamos pisando em terra firme. Eu tinha 19 anos quando o Lula foi eleito. Lembro-me da euforia.”
No início do filme, Petra releva a posição política da família – ela é neta de empresários da construção e filha de militantes de esquerda (o seu nome, Petra, homenageia Pedro Pomar, fundador do Partido Comunista do Brasil assassinado durante a ditadura) – e utiliza o paradoxo familiar para instituir uma imparcialidade que, naturalmente, apenas pode ambicionar. Diz-nos: “Eu concordo com a linha da antropologia de que não tem como ser objectivo. Isso é colonialista. Para escapar do recurso da objectividade, é preciso expor que o que você está fazendo é a interpretação dos factos.” (1).
A arquitectura narrativa parte assim da sua história pessoal e mistura-se com ela: É evidente o fascínio pela figura de Lula desde o primeiro voto (aos 19 anos), a antipatia por Sérgio Moro, a proximidade com Dilma (ela e a mãe de Petra frequentaram a mesma escola e estiveram presas no mesmo cárcere). O filme beneficia não apenas dessa proximidade a algumas das figuras centrais, mas também do acesso a uma quantidade considerável de material de arquivo. Há registos belíssimos de planos aéreos de Brasília, de manifestações e tumultos, das sessões no Congresso Nacional, filmagens do Palácio da Alvorada simbolicamente imenso e vazio, diálogos entre Lula e Dilma e gravações telefónicas, misturados com entrevistas a anónimo e aos protagonistas (alguns recusaram, como Aécio Neves) e vídeos caseiros da sua infância e adolescência. O que o torna verdadeiramente apelativo é o trabalho de organização e montagem de todo este material e, uma vez mais, a narração pausada e melancólica, na voz de Petra. Pode dizer-se que Democracia em Vertigem é um conto sobre um sonho desfeito – o sonho da democracia – que era o dela, o de Lula e o do povo brasileiro.
” (Lula) é um escultor cujo material é a argila humana”
Alguns dirão que se trata de uma visão fragmentária ou subjectiva – necessariamente assim será, este não pretende ser um trabalho jornalístico que reponha uma ‘verdade histórica’. Mas o olhar de Petra Costa está longe de ser acrítico: o seu posicionamento vai-se estruturando, talvez não tanto de um ponto de vista político (onde poderia ser bem mais claro), mas certamente afectivo. Desenvolvendo-se no sentido da exposição de um golpe orquestrado pelas elites em nome de interesses económicos e políticos, há espaço para algumas observações amargas em relação ao PT (ou, pelo menos, em relação aos vícios da política que ela identifica como inevitáveis) e um esforço sincero em mostrar ambos os lados da questão recorrendo à informação e factos disponíveis. Mais do que uma posição política, o resultado final é um fresco de uma sociedade profundamente fracturada e um sentimento, pungente, de desencantamento. Por isto, Democracia em Vertigem é filme raro. Petra Costa não pretende oferecer mais que uma impressão pessoal, tão poética e intimista como as anteriores, desta vez sobre um período histórico turbulento no qual cresceu e se fez adulta. A visão segmentada da narradora é largamente compensada pela honestidade do seu relato – e isto, por si, é uma forma de resistência.
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(1) Correio Braziliense, 30-06-2019