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Comemorou-se no dia 8 de Março o Dia da Mulher. Em boa hora, pois, estreou Difret, de Zeresenay Berhane Mehari, realizador etíope que aqui se estreia nas longas-metragens, escrevendo o argumento e realizando a obra. De 2014, com estreia mundial no festival de Sundance, é um filme escorreito, baseado no caso de Hirut Assefa (Tizita Hagere, baseada em Aberash Bekele), uma jovem etíope que cometeu um homicídio em legítima defesa após ser raptada para servir de noiva, e de Meaza Ashenafi (Meron Getnet), advogada membro de uma organização não-governamental etíope que a defendeu no processo.
Regra geral, para além da violência doméstica típica contra as mulheres e do problema da mutilação genital feminina (que afecta parte da África lusófona, com ramificações da respectiva comunidade em Portugal), temos aqui um outro fenómeno que merecia divulgação e consequente reflexão. Na fita do tempo, é um filme situado nos anos noventa, em plena era de Meles Zenawi, o líder etíope mais influente do século XX, a par de Haile Selassie. Quer um, quer o outro tiveram ímpetos reformadores que redundaram em polémica e conflitos sociais – Selassie (monarca a raiar o ditador) com a tentativa de abolição total da escravatura e introdução da primeira Constituição etíope e Zenawi, cujas reformas de jaez tecnocrático e resolução da questão da independência da Eritreia viriam a colocá-la nos ecrãs da CNN e fora cosmopolitas, bem longe do Live Aid de 1985.
Em toda a sua riqueza cultural e histórica (afinal, foi dali que os primeiros homo sapiens se começaram a espalhar), a Etiópia poderia ser considerada como mais um país de contrastes, passe-se o chavão; também tem divergências campo/cidade e instituições formais/tradições populares, como Difret ilustra. Porém, há similitudes entre o Norte e o Sul do país e os diversos grupos étnicos e religiosos que compõem a Etiópia: a tradição do rapto da noiva, com ou sem o consentimento da família desta – em muitos casos, as futuras noivas são praticamente crianças, tratadas como autênticos objectos sem vontade nem dignidade próprias, como sucede a Hirut.
O começo do filme é brutal no seu impacto: à nossa primeira imagem da Etiópia, de país saído das secas e fomes, Terror Vermelho, fundistas e guerra da independência da Eritreia contrapõe-se um país de paisagem bucólica não muito diferente da nossa planície, com crianças numa escola para ambos os géneros e um ambiente parco de recursos, mas aparentemente saudável, no qual se insere Hirut. O professor recomenda-lhe a passagem de ano e esta não cabe de si de contente, rumo a um futuro melhor do que aquele reservado aos do seu meio; contudo, a caminho de casa a sua vida muda violentamente: o rapto por um grupo de estranhos armados e a prisão num estábulo – o pior ainda estaria para vir, contudo.
Planos intercalados da solidão e terror de Hirut em cativeiro com o do grupo de captores, de entre os quais se destaca Tadele Kebede (Girma Teshome), o seu suposto futuro marido. O terror consuma-se na violação de Hirut, agora “devidamente” marcada para o casamento.
Porém, o captor esquece-se da sua espingarda Simonov, erro aproveitado por Hirut, que escapa e, após uma breve perseguição por um matagal, mata Tadele a tiro, numa sequência de clara legítima defesa. Sendo um filme de interesse para juristas e estudantes de Direito, toda aquela situação consubstancia a legítima defesa (e seus elementos) do nosso Código Penal, no seu artigo 32.º: agressão actual e ilícita (e defesa contra); animus defendendi (vontade de defesa contra a agressão do agente); meio idóneo (dada a disparidade de forças entre uma rapariga que mal entrou na adolescência e homens adultos). Supostamente salva pela polícia civil local, Hirut é detida e acusada de homicídio – isto pelo Direito positivo, que o Direito comum acusa-a de homicídio e violação (!) de pacto matrimonial, cuja pena é a morte, em plena retribuição da comunidade.
Se Difret não é um filme inovador ou excepcional, tem o mérito de mostrar as diferenças e conflitos entre o mundo moderno e sua legislação e as tradições locais. Temos, pois, todo um inquérito criminal por parte do Ministério Público da sua região a sobrepor-se ao julgamento popular da reunião dos mais velhos da aldeia debaixo da árvore – mutatis mutandis como a reunião dos homens grandes de uma tabanca na Guiné-Bissau ou como uma banja em Moçambique.
Não se julgue, porém, que o Estado, na perseguição penal a Hirut, é objectivo e neutro: perante as dificuldades em estabelecer a verdadeira idade de Hirut e a recusa do procurador em aceitar os registos paroquiais (como se se estivesse no Portugal pré-1911 ou na primeira metade do século XX), o médico que efectuou a perícia a Hirut atribuiu-lhe a idade de dezoito anos, quando, pelas contas mais correctas, não terá mais de treze ou catorze anos. O desenvolvido peito da jovem foi o factor determinante para o clínico, num caso claro de preconceito machista e de falta de rigor científico.
Neste imbróglio, Hirut é patrocinada por Meaza (e mais advogadas da associação Andinet) nos tribunais judiciais e pelo próprio pai no tribunal popular; pai este que é culpado pela própria mãe (!) pelos azares de Hirut – a frequência da escola por parte de Hirut só trouxe maus agoiros à família. Aqui descobrimos o resto da família da acusada: uma irmã mais nova e a existência de uma outra irmã, Meseret (nunca retratada), que foi raptada, obrigada a casar e que tem um destino miserável, com quatro filhos e um marido alcoólico – tantas semelhanças com tantas outras mulheres por esse mundo fora.
O pai vela pelos melhores interesses da filha e o tribunal popular acaba por considerar que o raptor assassinado, ao não ter respeitado a decisão de o pai de Hirut recusar conceder-lhe a mão da filha, não merece uma retribuição tão gravosa quanto a morte da ex-futura noiva – fica-se pelo pagamento de uma espécie de indemnização de três mil birres e pela expulsão da jovem da aldeia. Também neste julgamento popular se nota a diferença de mentalidades: do lado de Hirut, o rompimento com tradições aberrantes e a procura de liberdade de escolha; do lado de Tadele e do pai, as acusações de desrespeito pela vida, pela tradição, a justificação do rapto e a recusa do papel da escola e do professor na vida da mulher. Quiçá a parte mais interessante de Difret.
Do lado dos tribunais judiciais, o filme acaba por ser relativamente genérico: perante o inquérito e o despacho de pronúncia que levará Hirut a julgamento, Meaza e a colega da associação de defesa das mulheres arrolam testemunhas (algo quase impossível, dada a pequenez e preconceitos do meio envolvente), revela aspectos da sua vida (incluindo ter passado por uma situação quase tirada a papel químico da sua patrocinada), mobiliza meios de pressão sobre a opinião pública e a jurisdição locais, chega a vias de facto com o Estado etíope, interpõe recursos para o Supremo Tribunal Federal da Etiópia (chegando a ser-lhe retirado o patrocínio a Hirut) e pede conselhos a Huy (Getachew Debalke), um antigo jurista influente etíope – personagem esta que carecia de mais desenvolvimento, dado óbvio peso que tem sobre a vida de Meaza. Adivinhamos nós: talvez o advogado que a ajudou enquanto adolescente vítima de rapto?
É dada alguma ênfase ao grande problema do Direito na prática: a prova dos factos. Desde a dificuldade no arrolamento de testemunhas (apenas uma) e tendo de jogar contra uma acusação que em tudo dificulta a acção da defesa, a estrutura do filme assume contornos dignos de um thriller, plasmando a boa escola contemporânea, mantendo o espectador atento e sequioso do que aí vem.
Note-se que Difret é baseado em factos reais, sendo ali retratada a inadaptação de Hirut ao meio urbano, qual peixe fora de água: nunca ouviu um telefone a tocar nem o ruído de uma televisão e assusta-se com a tecnologia; indaga-se, ainda, porque é que Meaza não é casada e porque é que não foi ainda considerada como imprestável pelos homens, como sucedeu a muitas mulheres no meio rural. Contraste vincado com a coragem demonstrada no campo, agora transformada em desconfiança e incerteza – Hirut nem a uma cama se habitua, preferindo dormir no chão, como fazia na aldeia.
No seu contexto, Difret é um filme de tribunal clássico, baseado em factos e pessoas reais, cumprindo o seu papel de divulgação e de chamada de atenção – neste caso sobre a condição feminina na Etiópia, país que se diz baluarte de convivência e tolerância inter-religiosas numa região complicada, em especial devido à constante instabilidade e decadência da vizinha Somália. No entanto, não é exactamente verídico: todo o processo durou cerca de dois anos outra das advogadas que mais se bateu pela defesa da arguida propriamente dita, Etagegnehu Lemessa, não recebeu o devido crédito, provocando polémica que levou à proibição de exibição do filme na própria Etiópia.
Mais ainda, na realidade, Aberash Bekele foi prometida pelo pai a um noivo que não o raptor, que se comprometeu a deixá-la terminar a escolaridade, contrariando obviamente o filme.
A superficialidade de muitas das personagens não ajuda a engrandecer o filme, mesmo que disfarçada pelo trabalho de câmara quasi-documental (que está na moda, diga-se) e pela fotografia exemplar nas sequências campestres, que nos revela uma Etiópia muito diferente do estereótipo corrente – de pobreza extrema, deserto, de país exportador de corredores como Haile Gebrselassie ou como terra santa dos rastafaris (jah bless).
Resumindo e concluindo, em terras (que se diziam) do Preste João, a Constituição da Etiópia estabelece a igualdade de género e a supremacia do Direito positivo sobre o costume inconstitucional – nos artigos 7.º e 9.º/1, respectivamente – mas parece que é só para pessoas da cidade e para os meninos do campo, que as meninas são mercadoria mal tenham “caroço”. A associação de mulheres advogadas faz aqui a parte de defesa da dignidade da mulher, de harmonia com as convenções internacionais e com a própria lei etíope, numa história com final feliz (rumo à autodeterminação da jovem) e pronta para ser candidata ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (não passou da pré-candidatura) e a outras honrarias.
Para os quiserem uma versão menos romantizada da realidade e preferirem sentar-se na sala de audiências em pleno julgamento, recomenda-se School Girl Killer, da documentarista britânica Charlotte Metcalfe, que até o momento em que foi proferido o acórdão filmou – imagine-se apenas a reacção da acusada quando sabe que a liberdade é o seu destino.
No cômputo geral, Difret serve de chamada de atenção e de comparação com a violência contra as mulheres por todo o mundo, evitando-se a condescendência por se tratar de uma produção etíope, até porque vergonhas em matéria de violência contra as mulheres temos nós cá muitas no mundo dito “civilizado” (relembre-se a vergonha do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça da “coutada do macho ibérico”, de 1989), ressalva feita quanto a chatas sem noção e feministas do Tumblr, claro.
P.S. – Um dos produtores executivos de Difret é Angelina Jolie, mas não deixem que isso vos distraia.