//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Em 1939/40 a Alemanha nazi não tardou a invadir meia Europa para arranjar o seu Lebensraum, os pretensos aliados anglo-franco-belgas tardaram a reagir e, quando o fizeram, pagaram caro pela descoordenação e incompetência grosseiras. A criatividade de Erich von Manstein e a foice imaginária de parte do seu plano de operações de Bewegungskrieg fizeram o resto: infiltrar tanques e tropas pelas matas das Ardenas e deixar os Aliados à beira do colapso militar junto ao mar.
Assim desembarcamos em Dunkirk: não há água nem tabaco e o fogo amigo é uma realidade. Perdem-se as espingardas Enfield e ao mínimo sinal de artilharia ou de Stukas, as tropas de sobretudos e capacetes molhados e moral destroçado transformam-se em fósforos caídos na praia, em notável trabalho de câmara. Amontoam-se os mortos e a esperança vai pelo mesmo caminho, enterrada à pressa na areia, afogada na maré esquizofrénica ou encalacrada na fila e sem chegar ao pontão da salvação.
Sete décadas depois, Christopher Nolan (Memento) debruça-se assim sobre a evacuação de Dunquerque, sob três perspectivas cronológicas (The Mole, The Air e The Sea) e pessoais: o alegórico infante Tommy (Fionn Whitehead), o piloto de Spitfire da RAF Farrier (Tom Hardy) e o Sr. Dawson (Mark Rylance), pai de família destroçada pela guerra, que pega noutro filho e num amigo deste, George (Barry Keoghan), e responde ao apelo da Marinha para resgatar as tropas em Dunquerque no seu barco, o Moonstone. Não é inédita esta visão de Dunquerque a vários pares de olhos: já em 1958 Leslie Norman filmou um homónimo igualmente baseado no desespero e na ambiguidade moral de quem viveu a Operação Dínamo. Nem da Segunda Guerra Mundial, vejam-se Battle of Britain ou The Longest Day.
Dawson sénior e o capitão-de-fragata Bolton (Kenneth Branagh; personagem compósita) são as bússolas morais de Dunkirk. Lacónicos e estóicos, a Dawson e ao soldado aterrorizado (Cillian Murphy) pertence o diálogo-pivô do filme; perante os apelos deste para se voltar para trás, responde Dawson: “Os homens da minha idade ditam a guerra. Porque é que enviamos só os nossos filhos para combater? Não podemos voltar para trás, porque se não formos a Dunquerque já não teremos mais casa”.
Não estamos em presença de heróis impolutos: roubam-se chapas de identificação, cantis e botas dos mortos, tenta-se embarcar pela porta do cavalo e aproveita-se a confusão no reembarque de unidades para orientar umas torradas, coletes e chá. A fotografia capta a paisagem dos esgares de dor e desespero, emaciados, molhados, cansados e sujos de óleo como se fossem pinturas de Jenny Saville.
Nolan filma, sem melodramas típicos de épicos norte-americanos (já chegava de perspectiva destes sobre a guerra), a desolação, o desalento e a paranóia – neste caso, do soldado traumatizado, resgatado na popa de um navio destruído por um U-Boot. Não articula uma frase, entra em pânico e no confronto físico facilmente e é o primeiro contacto da tripulação do Moonstone com o desastre iminente nas praias. Os alemães são clarões, ruídos de sirenes e vultos sem cara, como burocratas combatentes– não sendo o Fritz caricatural típico de Hollywood ou a criatura mítica de Belyy Tigr.
Contado em analepse e prolepse e cruzando-se as tramas a dada altura, vemos o fim de muitas personagens antes de lhes vermos o princípio, seja no ar, no mar ou em terra. E o nosso Tommy sempre com a pior sorte do mundo: tenta o embarque ao resgatar uma baixa e é mandado passear, embarca num navio militar e acaba a flutuar com a guarnição sobrevivente e negam-lhe embarque num salva-vidas. Quando se pensa que a situação não podia piorar, piora mesmo (o Murphy riu-se): Collins (Jack Lowden) é abatido e Farrier começa a perder combustível, mais um navio é afundado e a traineira de Tommy, Alex (Harry Styles, num pulha mal agradecido sem vergonha) e do francês “Gibson” (Aneurin Barnard) serve de carreira de tiro improvisada e mete água. O épico de guerra dá lugar ao thriller. O tempo meteorológico continua mau, mas enfim a bonança em forma de centenas de embarcações civis: o povo improvisadamente mobilizado para trazer os seus mais aflitos para casa, em volte-face de situações.
Planos ora abertos (já em Atonement de Joe Wright tínhamos visto um belo plano ininterrupto da zona) ora fechados e música contemporânea de Hans Zimmer, inspirada em Nimrod de Edward Elgar mas raramente tocando na típica fanfarronice sinfónica do género, ajudam à claustrofobia e à incerteza. Se nalgumas sequências é acessório o som extra-guerra, noutras reforça a pulsação pela sobrevivência. A passada é fugaz e não pede maior desenvolvimento de personagens – quem é o nosso melhor amigo por segundos está morto no minuto seguinte, não há tempo para contar como morreu o filho mais velho do Sr. Dawson ou como cresceu o soldado aterrorizado. Ressoa, isso sim, o mito da grande fuga no imaginário da Britishness.
Dunkirk é um filme simples, sem a tralha emocional de Interstellar nem o explosivo barroco de The Dark Knight Rises, intelectualmente pouco denso (salvar, sobreviver ou morrer), mas moral (as botas e o cantil dos mortos são o meu garante, mas ajudar o camarada também é imperativo) e historicamente (para onde vai a Europa livre depois disto?) profundo: findo o combate militar, começa o combate pela vida e, pelas acções de Tommy, Farrier e dos Dawson, pela dignidade – nossa e do próximo. Salvo o final com o discurso-chavão de Churchill na voz cansada de Tommy, Nolan evita com sucesso a lagriminha e o dramalhão musculado, ficando-se o pathos por um suspiro de alívio colectivo ao avistar-se Dorset – menos para Farrier, por quem espera um Stalag.
Não se podia pedir tudo a Nolan (mesmo com um orçamento colossal), mas convinha não transformar os franceses em meros ladrões de botas desesperados que tentam furar filas, até porque se o anel à volta de Dunquerque não se desfez mais depressa a eles se deveu (e à hesitação de von Runstedt em avançar com os seus tanques) e não à divina providência de discursos de Churchill ou de simples sorte.
“Nós desiludimos-vos, não foi?”, pergunta, no fim, o soldado ao civil. Ao contrário de Weygand e Gort, nem eles, nem Nolan desiludiram. Live to fight another day, até porque o desastre da Malásia em que não houve nada disto ainda estava para vir, tal como a claustrofobia de Leninegrado (menos Dia D e mais Frente Leste, prezados cineastas ocidentais), um milhão de vezes pior do que o Blitz.
A caminho dos Óscares e das listas de melhores do ano vai Dunkirk, pois então.