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La Rinconada é considerada a cidade mais alta do mundo e situa-se nos Andes peruanos, a 5500 metros de altitude, nas proximidades de uma mina de ouro. É, previsivelmente, um lugar desesperado a que os desesperados se submetem, na esperança de uma vida melhor. Essas são as histórias que Salomé Lamas ouve e reproduz na sua segunda longa-metragem, que venceu a competição do Porto/Post/Doc, depois de ter sido apresentada na Berlinale e de ter passado pela Viennale ou pela Mostra de São Paulo, entre outros festivais. As rodagens demoraram cinco semanas e, tal como as experiências que o filme retrata, foram um desafio.
Às paisagens de tirar o fôlego, da montanha, do deserto coberto de neve, das casas construídas na encosta, com que Lamas abre o filme segue-se um plano fixo sobre uma passagem da mina obscura. Passagem é o termo, já que durante os quase 60 minutos do plano vêem-se passar, de forma quase contínua, para cima e para baixo, mineiros em fatos térmicos, reflectores, com capacetes equipados com lanternas cuja luz caminhante nos permite vislumbrar os contornos do caminho. Sobre o som do palmilhar dos mineiros e da água fria que escorre das paredes, ouvem-se testemunhos de habitantes locais: o casal desalentado que coloca a última fé, e o último dinheiro emprestado, na terra inóspita onde o homem poderá trabalhar numa mina e a mulher, a quem a tradição impede de fazer o mesmo, trabalhar ao relento, separando pedrinhas de ouro das sobras daquilo que vem da mina. Apesar de ter de aprender tudo sozinha – é o salve-se quem puder –, a mulher tem mais sucesso que o homem. Talvez neste caso isso não seja um problema, mas a “independência” das mulheres da zona – as pallanqueras, filhas de Awichita –, livres de venderem o ouro que encontram, deixa alguns homens descontentes. Ou pelo menos é isso que interlocutoras de um programa de rádio local vão dizendo. Muitas histórias se cruzam nesta rádio que ouvimos ao fundo, embutida na água infiltrada da mina: histórias de miséria, de ganância, de pancadaria, de humilhação, de alcoolismo e de prostituição. Oprimidos pelos contratantes, oprimidos pela ambição e pelo individualismo daquela terra de ninguém, os homens entregam-se à cerveja e às mulheres. O pouco dinheiro que retiram do trabalho que lhes tira a vida, gastam-no a esquecê-lo, tal qual nos livros de Zola. O ouro é cada vez mais raro. A esperança de uma vida melhor, que financeiramente até poderá chegar para os mais comedidos, transforma-se na esperança de uma vida que não se acabe a cada descida. Para isso, fazem-se rituais, sacrificam-se fetos de animais (ou de humanos).
Com o fim do plano do interior da mina, acaba-se o anonimato daqueles que falam. Atenua-se, também, a intranquilidade do espectador confrontado com uma hora de amargura velada na escuridão da mina da terra de ninguém – literalmente, já que nenhum indivíduo se ilumina para a câmara. Na segunda parte do filme, Lamas diversifica os planos e imprime-lhes algum movimento para desvelar o quotidiano daquele povo (mais de 50 mil habitantes) e para o voltar a trazer para o domínio do alumiado, do humano. Começa por mostrar-nos as mulheres que antes ouvíamos pelo intermédio da rádio. Elas suportam o frio, a escuridão, e o trabalho extenuante, mascando coca. Mesmo quando não o fazem “lá em baixo”, com os maridos, são obrigadas a fazê-lo nas pausas do laboro para aguentar as dores de cabeça e ultrapassar a fadiga. Talvez que não vão beber no botequim para esquecer o dia, talvez que não andem a cambalear pelas ruas enlameadas onde se urina por entre os que passam, mas o seu quotidiano é tanto o dos estimulantes quanto o dos homens.
O salve-se quem puder é a constante de ambos os sexos, de todas as idades. Também por isso, para acudir ao desespero dos andrajos, dos gases poluentes, da lama e dos excrementos, do frio, do escuro e da neve, a religião continua a funcionar como o melhor estimulante, mais que não seja por ser comummente aceite e desejável. Os cultos misturam rituais pagãos e cristãos, sacrificam-se animais, rezam-se Pais Nossos, recitam-se lengalengas e, claro, bebe-se e dança-se com a bênção divina. A festa e a fé dão as mãos para fazer esquecer a vida que a elas obriga. Estamos perante aquele ciclo fechado comum a todas as vidas, mas mais flagrante nas vidas que se consideram miseráveis. Lamas tem o cuidado de dar tratar de forma análoga as histórias de desespero, de privação, e as histórias de tirania, de perversão. O contraste entre a paisagem inacessível (desejada) e a vida dura de trabalho e perdição é o exacerbar de um contraste com que o espectador sensível se sentirá obrigado a identificar. A terra prometida, Eldorado, não está aqui, mas não está, tão-pouco, em nenhum outro lugar.