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Vítima de um violento ataque cardíaco, Daniel Blake é aconselhado pela sua médica a deixar o trabalho e a pensar apenas em repouso e reabilitação. Como seria de imaginar, estas não são notícias que se recebam de animo leve quando tudo o que resta depois da morte da mulher é o peso de 40 anos como carpinteiro, a única actividade que ainda lhe vai dando algum alento e vontade de prosseguir numa vida manifestamente solitária. É neste mar de adversidades que se apresenta a derradeira némesis de um sexagenário preso num corpo incapaz de corresponder à vontade de trabalhar, o Estado. Depois de uma entrevista preliminar deliciosamente satirizada, Daniel recebe a notícia de que foi considerado apto para trabalhar e terá de continuar a procurar emprego para permanecer com o subsídio a que tem direito. É também nos meandros da burocracia governamental que conhece Katie, uma mãe solteira de duas crianças, obrigada a mudar-se da grande cidade para a Newcastle depois de lhe ter sido oferecida uma casa. O que surge desta amizade é um retrato crú, cruel e estranhamente bem-humorado dos processos impessoais que afectam vidas de uma forma profunda e quase irreversível.
Ken Loach apresenta-nos um retrato ultra-realista de uma realidade super politizada, que tende a esquecer o lado humano em prol da auto-subsistência inócua do estado, estado esse que aqui aparece completamente desligado dos seus cidadãos. É um filme com uma carga dramática demolidora, capaz de colocar de joelhos o coração mais duro, mas que também é pautado por um sentido de humor capaz de rasgar o sentimento de impotência e frustração presente por toda a história. Daniel Blake é o protagonista mas não é o foco, é na viagem deste homem que, de uma forma quase voyeurista, vislumbramos os extremos a que as pessoas em condições similares são sujeitas, é este o ponto forte do filme, mas que acaba simultaneamente por ser o factor que mais nos distancia das personagens. É impossível não sentir tudo aquilo que as personagens estão viver, mas não deixamos de pensar que há uma visão política demasiado subjacente para nos concentrarmos nas pessoas. Não deixa de ser uma queixa insignificante no meio de um todo quase irrepreensível, que facilmente nos faz esquecer algumas escolhas de edição duvidosas, com transições pouco fluídas entre cenas com a opção fade out/fade in.
Dave Johns e Hayley Squires oferecem-nos interpretações magistrais que esperamos de veteranos, tendo em conta que o primeiro é mais conhecido como comediante de stand-up e que a segunda teve o seu primeiro papel apenas há 4 anos, temos aqui uma direcção de actores clinicamente trabalhada para nos esbofetear com um realismo dilacerante. Na verdade, apesar da personagem titular estar a receber largos elogios, é uma cena muito específica com a actriz Hayley Squires que resulta no maior murro no estômago de todo o filme, uma visita ao banco alimentar. Outra personagem que merece destaque é toda a comunidade à volta da realidade urbana de Daniel, sentimos que há um apoio comovente e uma entreajuda que não se manifesta da forma mais explícita. Vemos as pequenas discussões entre vizinhos porque alguém não levou o lixo ou porque não apanharam as fezes do cão, mas quando alguém precisa não há raça ou diferença etária que abale essa noção de comunidade.
I, Daniel Blake é um filme violento mas repleto de esperança, esperança que inevitavelmente acaba por morrer mas que perdura até aos limites do possível. Numa sociedade “digital por defeito” vemos o mundo pelos olhos de quem usa o “lápis por defeito”, de quem já perdeu uma vida e que tenta desesperadamente não ser arrancado de outra, por mais negra que seja.