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Há vinte anos (31 de Outubro de 1995), ocorria a ante-estreia de A Comédia de Deus, segundo filme da trilogia de João César Monteiro, cineasta nacional de referência, sempre irreverente, maledicente e displicente para com as convenções sociais e políticas – e culturais, que os preconceitos e mediocridade continuam a existir. Não estava uma trilogia planeada, mas sim um díptico, com algumas sequências em Paris e filmado em cinemascope, o que não se veio a verificar. Ficou, isso sim, um grande filme, intemporal e digno representante do cinema de Portugal. Ficou, pois, o cinema nacional a ganhar com este trio de filmes, escrevendo-se hoje sobre o irmão do meio, esta A Comédia de Deus. Cavaco continua a ser uma espinha na decência nacional, mas já perdemos o cineasta provocador, para mal da Pátria.
Continua a saga de João de Deus, agora mais respeitável, maturo (?) e “sério” – para trás ficaram as fixações com peitinhos de rola, marchas sobre São Bento e actividades profissionais de baixa renda e muita instabilidade. É agora (supostamente) um gerente de sociedade comercial diligente e exigente com as subordinadas – a “alma da casa”, como se intitula e, como faz questão de referir na conversa com a patroa, Judite (ex-prostituta, por Manuela de Freitas), não presta contas a ninguém, qual Marquês de Pombal ou déspota esclarecido dos gelados.
Ainda que esteja agora mais confortável na vida e seja já um senhor respeitado e respeitável – não precisa de levantar a voz para se fazer entender –, continua um ser cheio de dicotomias e contradições: refinado, mas devasso; defensor da maternidade – “[…] que um dia serás mãe […]”, repete ele às funcionárias –, mas ignorando a moral e os costumes aceites pela sociedade em geral; homem de sabores ou homem de perfumes – bouche em vez de nez, vendo-se como um cientista da ciência geládico-púbica acima da Humanidade, mas ao serviço de outrem? Sempre com a “hortaliça” no sítio, como se verá.
Com efeito, João de Deus tem agora mais responsabilidades, mas também subiu a parada da taradice: reúne, num Livro dos Pensamentos, pentelhos de muitas mulheres: desde a rainha Vitória (“God shave the Queen”) até Rosarinho (Raquel Ascensão) e Joaninha (Cláudia Teixeira), duas ninfas-alvo do nosso tarado de serviço. É o arquivo Mitrokhine de João de Deus, um corolário da actividade de geladeiro e coleccionador de pentelhos femininos, devidamente examinados e catalogados, com um pequeno pensamento ao lado, em jeito de glosa à Acúrsio.
Temos para nós que João de Deus é, simultaneamente, como São João de Deus e João de Deus, o pedagogo: um tremendo auxílio às pobres vítimas da ignorância, iniciando as pequenas nos meandros da boa técnica de gelado-ao-cone (sem metáforas, atenção) e na refinação do trato, flagelando-se com as suas próprias tropelias pelos estabelecimentos e ruas, como uma penitência. João de Deus será, para nós, um titã – assim para o remediado, não um titã de topo, vá – que perdeu (ainda mais) as graças dos Deuses, sendo remetido, por castigo, para o Paraíso, mas do gelado.
Passeia agora toda a sua javardice à moda de Georges Bataille (ou Bukowski, acrescentamos) por uma zona de Lisboa mais chique e cosmopolita, longe da decrepitude de Alfama ou da Mouraria. A Praça de Londres e redondezas são agora a zona de operações de João de Deus, que não cai em chico-espertices de formosas (de semblante e não só) “estudantes” da maior universidade do País, a Universidade da Vida; benemérito, adianta quinhentos (saudosos) escudos para as propinas da jovem candidata a funcionária d”O Paraíso da Fruta”.
Quem é, então, João de Deus? Um bipolar dionisíaco nas preferências sexuais e um apolíneo na sua investigação profissional, um mestre geladeiro pouco ortodoxo que se recusa a integrar numa sociedade cinzenta e hipócrita, zombando-a; um lúbrico educador das moças pouco avisadas – menos Virgínia (Anabela Teixeira), a funcionária que não cai nos seus engodos e ainda o força a admitir que aquele campeonato, o das novas, já não é para ele. Com direito a lágrimas falsas deste.
É, fundamentalmente, uma das grandes personagens do cinema Português, a par de um Anastácio, de um Vasco Leitão, de um alferes Cabrita, de um Kilas ou de um Palma Bravo. Um voluntário estóico, que bem poderia dedicar-se, num hipotético quarto filme, a completar a obra do Barão de Teive sobre a educação dos estóicos.
Convive com os mortais, descendo do seu palácio e comprando e mandando amanhar uns cachuchos na peixeira (Maria Ester Caldeira, que transita de Recordações da Casa Amarela), que pedem um arroz de tomate devidamente malandrinho (ou uma açorda de coentros, que também marcha) – aqui se vê a genialidade do cineasta, que transforma um negócio corriqueiro num ritual exploratório da linguagem, cujo produto é toda uma sequência magnífica, num plano que mais aparenta o de uma reportagem ou de um documentário. Só se desvia o olhar para observar Tareco, o gato com suposto complexo de Édipo, de acordo com as peixeiras daquela rua. Todos vivinhos da costa.
De rajada, nova sequência tremenda: a ida ao talho de Evaristo, pai de Joaninha – esta que, fantasmagoricamente, não provoca o toque do irritante sino da porta do “Paraíso” –, que acredita nas virtudes da mioleira com ovos mexidos. Novamente, a dicotomia/confronto monteiriana: Agnus Dei de Haydn e muito sangue, líquido redentor, contra uma evocação da Lisboa brejeira de outrora, através do neo-provocador que volta a perguntar, décadas depois, se “Ó Evaristo, tens cá disto?”. Continua viva a Lisboa de Santana, Silva, Costa, Ribeirinho e afins, desta vez com palavrões do Evaristo de noventas, que esfrega as mãos ensanguentadas do cabrito e das isquinhas de vitela que, finamente cortadas, são um prazer epicurista do nosso amigo (?) de Deus.
A perdição de João de Deus são mesmo as mulheres: Rosarinho e Joaninha, cada uma de sua maneira, com uma evocação de Mimi (morta por desmancho emRecordações…; Sabina Sacchi) aquando de uma conversa com Judite, a patroa do titã caído em desgraça. Esta última, ex-prostituta e ambiciosa, bem pode ser, tal como João de Deus, uma personagem advinda das “Metamorfoses” de Ovídio, tal é a mudança de uma vida de suposto pecado para uma vida dita respeitável na moral social. Ao contrário de João, precisa de gritar e gesticular com veemência para se fazer respeitar – um sargento-chefe Hartman em oposição ao Nosferatu (Max Schreck/Monteiro) de João.
O eros bipolar sempre presente, entre a descrição quasi-orgásmica das virtudes de um óleo de banho por parte da Senhora Arquitecta (Ana Padrão; adivinha-se referência ao escândalo Taveira) e Quim Barreiros na fábrica de gelados, aquando do ataque de João sobre Rosarinho, que morou no Cambodja (belíssimo trocadilho com o bairro lisboeta e o país asiático e sua época das chuvas) e é seduzida surrealmente pela personagem de João César Monteiro.
A ambição de Judite é tal que anseia fundir o seu negócio com o de um pedante geladeiro Francês (Jean Douchet). Assim, os talentos de João de Deus são postos à prova: o seu método de produzir gelado a partir de leite que banhou raparigas, condimentado com os seus pentelhos (que se danem o pau de baunilha e o açafrão) terá de garantir o sucesso da fusão transfronteiriça.
Toda a sequência é de antologia e mordaz: a parolice pseudo-cosmopolita (ubíqua ontem e hoje em Portugal) do evento de apresentação do gelado ao senhor estrangeiro – completada por fina baixela e presença de clero e políticos, como se de uma inauguração de fábrica cavaquista se tratasse – é encimada por um fenomenal pseudo-manifesto de João em favor de um gelado supranacional, que una a Humanidade e seja uma essência universal. O titã salvaria os homens através de bolas de gelado. Mas não, que: Monsieur, vôtre glace? C’est une merde!
Este “Paraíso” cremoso também não ajudaria em nada João de Deus noutra sequência: o ritual cerimonial de sedução de Joaninha, em casa do próprio. Ou seria, também, de criação de um novo gelado? Servido numa taça que lembra uma vulva, seria indigesto para aquela, que também abusa de outras guloseimas, provocando-lhe grande (e hilariante) desarranjo intestinal. Para além do prazer carnal, serve Joaninha de chocadeira, sentando-se numa cornucópia de ovos, naquele templo de criação geladeira/arquivo púbico/arena de parafilias pedófilas.
Não tarda a vingança de um Cérbero de uma só cabeça: Evaristo, pai de Joaninha, numa cena cómica que mais parece de uns “Looney Tunes”, na qual de Deus se resigna a não conseguir fumar um cigarro e a provar o veneno dos punhos do pai enraivecido, que nem um Sócrates javardo aguardando punição. Enviado para o hospital, novamente a zeros.
São as mulheres, de todas as idades e de facto, a perdição de João de Deus, como em Recordações…. Na casa-de-banho da geladaria, praticando a sodomia com Rosarinho; na piscina, acompanhado de Tomé (Saraiva Serrano), envergando uma t-shirt dos Marines (paradoxo do lingrinhas engatatão), beija as concorrentes (incluindo Virgínia) e segue-as para o balneário, com a buzina de Tomé em óbvia metáfora para coito.
Terão as mulheres sido vestais disfarçadas, sacrificando-se a João de Deus, mas escondendo guardiões como Evaristo ou Judite. Se aquele era Cérbero, esta será Kali, que destrói e transforma o ingrato João num pária daquele Paraíso. Não antes de “reabilitar” Rosarinho, arranjando casório com um engenheiro Finlandês, em óbvio lance de tráfico de pessoas travestido de justa causa moral. Berra contra João, acusando-o, com veracidade e justeza, de malfeitorias cometidas no “Paraíso”, expondo toda a sua ignomínia e ingratidão, numa síncope de vigorosos movimentos sentenciadores. Voltará ao palácio para o encontrar vandalizado e o “Livro dos Pensamentos”, sua verdadeira obra, transformada em cinzas. E não tem Lívio (Luís Miguel Cintra), para o acompanhar na derradeira desgraça do filme.
Cabe a última palavra a João de Deus, ainda na sentença de Judite na geladaria, recorrendo aos clássicos: “não são vocês que me expulsam, eu é que vos condeno a ficar!”. É a sina de João de Deus, andar toda a Eternidade nisto. Enfim, devasso e ingrato mas livre e devidamente malandrinho.