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Nos dias que correm, a Europa vê-se a braços com conflitos no seu meio geopolítico, muitos deles causados pela sua própria arrogância e seguidismo, como aqueles a que se assiste na Síria ou na Líbia. Diz o gasto chavão que a História repete-se e vemos nova vaga de gente desesperada (e iludida) a tentar chegar a paragens em que não tenha de se preocupar com o facto de o minuto seguinte poder ser o último.
Assim se vivia nos Balcãs há vinte anos; desvarios políticos do imbecil optimismo pós-URSS, tentações estratégicas e anseios nacionalistas levaram ao fim da Jugoslávia. Rasgou-se o Pacto dos Balcãs de 1953 e o elo mais fraco sucumbiu a ambições nacionalistas e à pressão estratégica dos EUA, Alemanha e Turquia – não dava jeito ter uma potência com capacidade industrial e militar como a Jugoslávia a estorvar. Quem se lixou? O mexilhão.
Em 1992, Vladimir Tomic, realizador de Flotel Europa, bósnio, fazia parte do mexilhão. A Bósnia-Herzegovina estava em plena guerra pela independência e, segundo um truísmo do realizador, mais valia o mar em Copenhaga do que uma cave em Sarajevo.
Nesse mar estava atracado o hotel flutuante Europa, vulgo Flotel Europa, que viria a receber mais de mil refugiados daquela guerra, de todas as origens étnico-religiosas – desde croatas a muçulmanos até bósnios de origem sérvia. A escola primária de Vladimir, cujo nome era, ironicamente, “Irmandade e União”, jazia agora em ruínas, tal como a ex-Jugoslávia e o sonho do marechal Tito.
Flotel Europa é simples: a adolescência de um rapaz cujo bairro balança ao sabor das marés (que nem vilarejos bósnios a mudarem de mãos consoante as ofensivas de cada lado) e que tenta disfarçar a incerteza e ansiedade da idade com a naturalidade que as contingências lhe impõem. Tudo através da lente de uma velha câmara de filmar VHS, comprada depois de um peditório no navio; cassetes essas que eram enviadas em vez de cartas. Tomic redescobriu-as e, com o auxílio da produtora Selma Jusufbegovic, resolveu contar esta história.
As autoridades dinamarquesas e a Cruz Vermelha tudo fizeram para amenizar o choque sentido por Vladimir e família, pese embora a relativa proximidade cultural de muitos refugiados com as tradições culturais dinamarquesas – observa-se o Natal a ser celebrado e o interesse dos bósnios em frequentar a escola dinamarquesa e aprender inglês. Outros, mais oportun-, afoitos, procuraram o casamento com dinamarqueses, para que o ambicionado asilo fosse alcançado.
Não sendo Tomic a filmar aquelas cenas de vida de refugiado, certo é que o foco de Flotel Europa acaba por nunca se afastar dele, por via da sua narração. Sentem-se as dores da distância e da incerteza de cada vez que chega uma carta do pai ou quando se envia um vídeo para a Bósnia. A mãe de Vladimir, professora na Bósnia, mantém a profissão no navio, tal como o optimismo que a leva a tranquilizar a família de cada vez que fala para a câmara; também aqui temos uma perspectiva privilegiada, que a mãe é um pilar da comunidade, incluindo nas relações com a Cruz Vermelha.
Pouco se vê do irmão mais velho de Vladimir, salvo a típica timidez adolescente e as parecenças físicas com um nativo dinamarquês de monta: Elias Bender Rønnenfelt, dos Iceage. Contudo, seria Vladimir a cultivar a curiosidade pela música, como se verá.
Ecos de Amarcord quando Vladimir nos fala da intérprete atraente: em plenário onanista numa sauna, os rapazes cobrem as caras com toalhas e atiram ao ar as suas fantasias com a intérprete, como os rapazes do filme de Fellini. Certo dia, Bósnia, filho de um soldado morto na guerra, o rapaz que dava alcunhas aos outros, passa daquela Gradisca geral para o interesse amoroso de Vladimir, Melisa – este espeta um soco a Bósnia, tendo, contudo, a hombridade de o atingir no ombro e não no abono de família.
Nesta coisa da adolescência, há sempre certo fascínio pela malta mais velha e, por inerência, mais fixe. Por essa altura, Beavis e Butt-Head andavam fascinados com Todd, o motoqueiro e Jerry Steiner era o fiel escudeiro de Parker Lewis – já estão suficientemente nostálgicos? Vladimir não era excepção: seguia e convivia com um grupo de refugiados mais velhos, como Goran, que foi recrutado por sérvios e por muçulmanos. Fugiu, pois perante o paradoxo “não queria dar um tiro a si próprio” – sintomático da mescla etno-cultural bósnia.
Este grupo de refugiados, tal como outros, não tinha pejo em gozar as coisas boas da vida, mesmo no meio das doenças e ratos do navio. Um poster com os dizeres “Sex, Drugs & Rock’n’Roll”, algum álcool e ganza e versões de canções da música popular ocidental eram entretenimento da juventude bósnia. Note-se: alguns deles eram músicos ou candidatos ao Conservatório de Viena a quem a ganância política e a vontade de liberdade roubaram as ambições.
Do alto do penteado à tigela (ou, dada a época, à João Vieira Pinto), Vladimir conta-nos, ao pormenor, as suas experiências. As condições do navio, longe de ideais, permitiam um pouco de solidariedade com quem ficou para trás; num Natal, Tomic recorda-se de uma encomenda enviada para a família: dois quilos de farinha, dois litros de óleo de cozinha, um quilo de farinha de milho, cinco latas de feijão, duas barras de chocolate, um casaco, um quilo de açúcar e um par de sapatos. Tudo na esperança de dias melhores e que o pater famílias voltasse são e salvo das trincheiras que era forçado a cavar.
Flotel Europa é, também, uma ligeira lição da história bósnia. Vladimir, quando obrigado a escolher uma alcunha, prefere “Boško Buha” a “Pila Grande” – o seu pragmatismo com o sexo oposto ultrapassado pelo apelo patriótico. Boško Buha foi um jovem partisan de Tito que morreu em 1943, na sequência de uma emboscada dos colaboracionistas chetniks – a história deste é ilustrada ao longo do filme como se imaginada e reconstituída na mente de uma criança, recorrendo-se a excertos da mini-série homónima do realizador croata Branko Bauer, de 1978.
Assim passou Vladimir Tomic a adolescência, numa normalidade possível, entre finais de 1992 e inícios de 1995, antes de Srebrenica e Dayton. As experiências levam-no às primeiras bebedeiras e cigarros com os “fixes” de Goran, bem como aos primeiros trabalhos, na aludida normalidade possível de um adolescente – a devoção e obsessão do amor adolescente e seu part-time a recolher garrafas, ganhando cem coroas num vasilhame, para as gastar numa pulseira com o nome de Melisa.
A grande noite de estreia em concertos seria também a grande noite de engate de Tomic, gizava ele. O concerto da banda Bijelo Dugme (onde pontificou Goran Bregovic), de Sarajevo, serviu para acentuar as divisões étnicas que se vão sentindo ao longo do filme: o vocalista, Alen Islamovic, é relegado e substituído por um cantor que inflama os ânimos com uma canção pró-independência. O povo dança e aplaude-o, enquanto Islamovic quase não tem público e o resto da banda nem apareceu.
Numa nota lateral, os Bijelo Dugme sofreram das mesmas fracturas de outras bandas da ex-Jugoslávia: diferenças político-étnicas levaram ao seu fim, como sucedeu aos Zabranjeno Pušenje de Emir Kusturica.
Os incidentes sucedem-se: televisões atiradas ao canal de Copenhaga (e substituídas por dinamarqueses intrigados) pela falta de paz na pátria e tensões étnicas em brasa – na entrega de reivindicações à Cruz Vermelha, um nacionalista bósnio, Ramiz, que já tinha intimidado Vladimir, é acusado de cobardia e reage com violência contra Goran e a mãe daquele.
A claustrofobia do navio lembra-nos, naturalmente, o monumental Underground, de Kusturica; ao contrário da cave, o navio não tem vigias, só algumas janelas, onde os refugiados observam e sonham com o exterior e onde são observados e visitados por dinamarqueses, que nem curiosidades com pernas. E o humor é escasso: a heroína, a depressão e o tédio causarão baixas no grupo de Goran e na consciência de Vladimir.
Numa festa de anos, este descobre que o tio foi recrutado à força para o lado sérvio e acabou morto por um compatriota muçulmano, na pior das ironias. A diversidade da família é continuamente posta em perigo, quando os avós, antigos partisans da Segunda Guerra Mundial, foram sequestrados e libertados por facções opostas do conflito, exemplo claro da confusão reinante.
E, abruptamente, a bonança possível: Vladimir e a família recebem a autorização de asilo em Copenhaga. Nada mais haveria para dizer ou filmar por parte de Meho, o homem da câmara. Acabaram-se as danças tradicionais e seus clubes e as idas à sauna.
Assim acaba Flotel Europa, com o “luto” social- juvenil de Vladimir, que vê Melisa por um canudo. Danem-se os Acordos de Dayton, que sabemos como a história acabou (relativamente bem, salvo a praga wahhabista saudita a ocupar espaço ideológico). Interessa é perguntar: se fosse em 2016, teríamos directos de Facebook de Vladimir, sua mãe e Goran?