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Funan
Título Português: Funan | Ano: 2018 | Duração: 84m | Género: Animação, drama histórico
País: França, Bélgica, Luxemburgo | Realizador: Denis Do | Elenco: Bérénice Bejo, Louis Garrel

O século XX foi, de todos, o maior triturador de pessoas. É disso exemplo o genocídio no Camboja de 1975-79, já alvo de tratamento artístico – veja-se The Killing Fields ou Enemies of the People. Em estreia em Portugal na presente edição da Monstra – Lisbon Animated Film Festival, Funan (nome de confederação de reinos na antiga Cochinchina) é mais um contributo sobre o tema, sendo a longa-metragem de estreia de Denis Do, cineasta de animação franco-cambojano, que já em 2009 foi co-realizador de Le Ruban, curta sobre a turbulência da Revolução Cultural Chinesa.

Produzido em formato 2D digital e parcialmente baseado no testemunho da mãe de Do, sobrevivente do genocídio, Funan apresenta forte cunho emocional, por vezes prejudicado por excessos que remetem mais para Hollywood do que para um cineasta que conta com testemunha privilegiada do que quis retratar – ah, as liberdades criativas. Certo é que o período foi um episódio negro, a tempestade perfeita de filhadaputice da política internacional de então.

A China e os Estados Unidos, de braço dado desde a visita de Nixon a Pequim em 1972, ajudaram à consolidação do regime – cada um de sua maneira, seja com armamento e apoio político-diplomático, seja com dez anos de bombardeamentos e o apoio tácito aos khmer vermelhos contra o reunificado inimigo-do-meu-inimigo Vietname. A arrogância e a incompreensão da cultura e povos da área por parte de Washington, DC fez o resto – veja-se as imbecilidades de William Westmoreland sobre o suposto desvalor da vida humana no Oriente.

Em nota lateral, nem a presença portuguesa escapou. Mais espiritual do que física, mercê da evangelização de muitos habitantes da zona, foi arrasada (tal como a comunidade muçulmana) pela barbárie pseudo-maoista, desaparecendo toda uma parcela de portugalidade (incluindo apelidos e sangue portugueses) que serviu soberanos e povo cambojano enquanto militar, diplomata e servidora pública durante séculos – ajudando à grandeza khmer, entre nós relatada por Diogo do Couto, João de Barros ou Camões.

De surra, mergulhamos na vida mundana (ou de delírio burguês, diria Saloth Sar/Pol Pot) de Chou (voz de Bérénice Bejo) e Khuon (voz de Louis Garrel), do filho Sovanh e a restante família. O dia? 17 de Abril de 1975, o da tomada de Phnom Penh pelos khmer vermelhos e da fuga de Lon Nol. Tal como os nazis com a falsa estação de comboio em Treblinka (tão bem descrita por Vasily Grossman), o engodo para expulsar a população da capital foi o do perigo de bombardeamentos norte-americanos. Resultado: dias de marcha e de crepitar de doutrinação das massas. Eis o Ano Zero, o de provar o que mais se teme, como cantariam os Dead Kennedys.

O centro nevrálgico de Funan: Khuon e Chou.

A inexorável marcha conduz aos campos de trabalho forçado, onde o regime quer parir um “Povo Novo”, livre de estrangeirices (como o carro de Khuon), vícios capitalistas ou perfídia contra-revolucionária. Intelectuais, médicos, magistrados, funcionários públicos, artistas e jornalistas reduzidos a uma turba que marcha por picadas e rios minados, coagida por capatazes em violência crescente que destrói os mais fracos. Assim se perde Sovanh dos pais, em sequência sacada de Empire of the Sun, de Spielberg.

Estamos perante um filme que é simultaneamente uma busca por um filho perdido e pela sobrevivência no meio da fome e do medo; o abraço e o sopro de Khuon no cabelo de Chou é o amor, ternura e esperança no meio das trevas. Tudo enquadrado por paisagem e fotografia magníficas, que escondem as atrocidades cometidas. E marcado por momentos de extrema bondade e abnegação, como a adopção de um filho, Lim, de uma guarda procurando redenção.

Muito de Funan passa-se à noite, quando as personagens conseguem confidenciar entre si, em simbólica escuridão das trevas do período. Se em 1975 ainda havia uma réstia de Humanidade em Chou e Khuon, a partir de Janeiro de 1977 a questão é mesmo sobreviver – aquela surge emaciada e frágil, mentalmente endurecida ao ponto de se irritar com Khuon por este ter ajudado a salvar a filha de um capataz khmer vermelho que quase se afogou num poço (“deixa-os perder um filho, para verem como é”).

Khuon, Chou e Sovanh são arrancados das suas vidas, vítimas da droga ideológica de Pol Pot, Son Sen e Ieng Sary; não passam de grãos de areia numa praia que se quer dragada para dali sair uma costa nova: a da imbecil utopia agrária. Aqueles quatro anos roubam-lhes a vida e a partir daí nem a números com pernas chegam, são um amontoado falante sob o jugo de analfabetos armados, guardiões de um colapso societal.

O Ano Zero em marcha.

Andam entre construtores do novo Camboja e inimigos do povo – basta um olhar mal interpretado para a vida lhes correr mal. Acima deles, o ex-PCC e agora Angkar (“organização”), entidade monolítica e omnipresente, ainda que paradoxalmente secreta, a que praticamente ninguém consegue dar resposta interpretativa (ou não fosse a leitura um vício burguês); certeira é a analogia de formigas num ramo com o comboio cheio de pessoas a caminho de mais um campo de trabalho e morte. Um outro impressionante pormenor de Funan para retratar a miséria latente: opulentos templos reduzidos a pocilgas e a mãe de Chou a desesperar por grãos de arroz que teimam em cair pelas frestas da barraca.

Funan mostra-nos, através de cinematografia sublime, que nos campos de morte cambojanos havia zonas cinzentas: favores sexuais pagos com comida e ambiguidades no tratamento de prisioneiros, com a portuguesíssima cunha proporcionada por Sok, zelota khmer primo de Khuon. A água límpida das bolanhas não confessa a morte ali ocorrida, como a barrenta e imunda de sangue de The Killing Fields. Pelo contrário, as águas reflectem o céu, mas certo é que a desmembrada família do filme vive o mesmo calvário, o mesmo macabro desterro que viveram Haing S. Ngor e Dith Pran.

A aparente paz no meio do genocídio.

Nuance fundamental: nunca vemos directamente a violência. Vemos clarões de tiros reflectidos na cara das personagens, ouvimos ruído de motores de camiões da morte e da carne desfeita pela enxada. As monções são o separador sequencial do terror, com adequada banda sonora de Thibault Kientz-Agyeman, convidado especial da Monstra.

Numa sequência de fenomenal fotografia (é assim tão boa), o ponto de viragem para Sovanh e da violência: a avó é levada e este vê-se sozinho no mundo, rodeado por capim e pela torpe doutrinação do regime, que bane as palavras “pai” e “mãe”. A sua inocência vê-se reduzida a brincadeiras com outras crianças prisioneiras, sem qualquer rumo que não a arregimentação dos slogans do “Povo Antigo”. A fome e o delírio revolucionário viram-se agora contra o próprio regime – os guardas matam-se entre si, lobos de si próprios.

Entretanto, chegamos a 1979 e à invasão (das poucas invasões que salvaram povos) por parte do antiquíssimo rival vietnamita, que destroçou o regime do Angkar e devolveu alguma dignidade ao Camboja. A maior pecha da película é mesmo esta, a atabalhoada aceleração rumo ao final, redundando num final hollywoodesco e delico-doce de escrita preguiçosa e amigo da lágrima.

Fotografia de excepção.

O reencontro num campo-hospital onde as moscas devoram Chou (faltou a Imagine, de John Lennon), nova cópia a Empire of the Sun na reaparição de Sovanh, a travessia das matas rumo à segurança na Tailândia e aquele momento de doce vingança do povo à moda do JP Gang contra os antigos captores (e de redenção de um deles). E, claro, o sacrifício último de Khuon.

Um derradeiro sopro (agora do vento) no cabelo de Chou marca o fim do calvário e o início de outra busca: a da normalidade pelos (únicos) sobreviventes mãe e filho. Somos brindados com o epílogo da praxe dos dramas históricos e, pronto, eis Funan. Os campos são agora simbolicamente verdes e o resto se (vi)verá.

Enquanto parte de um conjunto de obras – de ficção e não ficção – sobre o genocídio cambojano, Funan resulta em cheio; porém, quem quiser um retrato mais fidedigno dos horrores de 75 a 79 e não queira ter trabalho a ver várias obras deverá ficar-se por documentários (relembra-se Year Zero: The Silent Death of Cambodia, escrito pelo incansável John Pilger) ou por The Killing Fields, que, a nosso ver, permanece a obra de ficção definitiva sobre o período. Enquanto filme de animação parece-nos uma estreia e tanto da parte de Denis Do – a par de The Missing Picture, é a grande obra de animação sobre a História recente do Camboja.

Nós assistimos ao filme e não ficámos indiferentes à História (nem à história), ao contrário das pedras de Angkor Wat, templo guardião da alma cambojana.


sobre o autor

José V. Raposo

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